Sergio Abreu e Lima Florêncio: Declínio dos EUA? Três interpretações
Indícios de uma nova ordem internacional deverão levar ainda muitos anos para se transformarem em realidade. Para embaixador, nesse cenário, é arriscado e prematuro apostar todas as fichas no declínio dos EUA e na hegemonia da China, um diagnóstico que recomenda um reexame da atual política externa brasileira
Indícios de uma nova ordem internacional deverão levar ainda muitos anos para se transformarem em realidade. Para embaixador, nesse cenário, é arriscado e prematuro apostar todas as fichas no declínio dos EUA e na hegemonia da China, um diagnóstico que recomenda um reexame da atual política externa brasileira
Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*
A guerra na Ucrânia abalou os alicerces da geopolítica e há sinais do surgimento de uma nova ordem internacional. Tal diagnóstico predomina entre analistas de diversas colorações políticas. Se a fotografia é aceita por muitos, o filme da história exibe grandes indefinições. O script é incerto, mas um capítulo é inescapável – o debate sobre o chamado declínio dos EUA.
A invasão da Ucrânia provocou forte reação do Ocidente, consolidou a coesão da Otan, produziu dependência inédita da Rússia à China e configurou uma clivagem maior entre as duas superpotências – EUA e China. Essa nova geopolítica tem suas origens na emergência econômica da China, inaugurada com as reformas de Deng Xiaoping no final dos anos 1970. Mas assumiu novo perfil com o protagonismo político da China, desenhado por Xi Jinping desde 2012, pautado pela hostilidade em relação aos EUA. Essa crescente tensão entre as superpotências estimulou intenso debate entre acadêmicos, jornalistas, empresários a respeito do chamado declínio dos EUA.
A inesperada reação dos EUA, da União Europeia e da Otan ocorre em um mundo marcado pelo questionamento da Ordem Internacional Liberal do Ocidente (Western International Liberal Order), pela emergência da China como superpotência política, pelo crescimento da desigualdade nas economias avançadas e pelo declínio das democracias, resultante da chegada ao poder de líderes populistas e de movimentos de extrema direita nos EUA, União Europeia e América Latina.
No período da Guerra Fria, a rivalidade com a União Soviética era ideológica e política, pois os EUA detinham indiscutível superioridade econômica. Isso mudou com a atual bipolaridade, em torno de EUA e China. Essa nova configuração foi, nas décadas de 1980 a 2000, sobretudo econômica e tecnológica, com a China reduzindo a assimetria em relação aos EUA. Apenas a partir dos anos 2010, sob a liderança autoritária de Xi Jinping, a China abandonou seu perfil de gigante econômico e anão político, passando a rivalizar com os EUA na geopolítica mundial.
A trajetória virtuosa da China – segunda economia (PIB de US $18 trilhões, inferior apenas aos US$ 24,7 trilhões dos EUA), maior exportadora mundial e acelerado avanço tecnológico – constitui o mais forte ingrediente do chamado declínio dos EUA. Isso é agravado pelo diferencial de crescimento da produtividade (muito maior na China), por um quadro fiscal mais desfavorável nos EUA (dívida pública correspondente a 121% do PIB), e elevado déficit comercial bilateral – as importações originárias da China respondem por 21,4% do total de comércio, enquanto as exportações para aquele mercado chegam apenas a 8% do total.
Outro aspecto do declínio relativo dos EUA no mundo diz respeito aos desequilíbrios associados a uma globalização que, nas palavras de Dani Rodrix, “foi longe demais”. O corolário desse modelo é conhecido: crescente desigualdade nas sociedades desenvolvidas; hipertrofia financeira; e perdas no setor produtivo.
Os desequilíbrios nas economias de mercado – crescimento econômico modesto, elevada desigualdade, e desindustrialização – convergem para uma distopia, cujos sintomas mais claros são: crescimento do nacionalismo; crise de representatividade; queda no número de países democráticos e aumento dos regimes autoritários; e ampliação de governos populistas de esquerda e de direita – Vladimir Putin; Recep Erdogan; Xi Jinping; Viktor Orban; Donald Trump; Jair Bolsonaro.
Diante desse quadro internacional, ganhou notoriedade a tese do declínio norte americano, que tem como destacado expoente John Mersheimer, professor da Universidade de Chicago e ícone da corrente realista. Para ele, há várias décadas, o mainstream da política externa norte-americana advoga a estratégia de defesa da hegemonia liberal ao redor do mundo.
Segundo Mersheimer, essa estratégia conduziu o país a dois grandes equívocos. Primeiro, acreditar que, com a abertura econômica, a China abraçaria o modelo político liberal. Essa crença levou os EUA a estimular, até a década de 2000, o crescimento da futura superpotência rival (China), fenômeno inédito na história, de acordo com o acadêmico norte-americano. O segundo equívoco seria envolver-se em numerosos conflitos de menor relevância (Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia), na ilusão de promover mudança de regime (regime change) e ampliar a hegemonia da democracia liberal ao redor do mundo.
Ao contrário da visão dominante em Washington, Mersheimer sustenta que o nacionalismo (e não o liberalismo) é a grande força motriz das sociedades e das relações internacionais. Nesse sentido, as intervenções norte americanas vão contra a corrente prevalecente na maioria dos países, que não têm aspirações democráticas. Por isso, o intervencionismo norte-americano agrava as crises nos países periféricos, tira o foco do principal rival – a China, e divide a opinião pública norte-americana.
No polo oposto dessa visão, John Ikenberry, da Universidade de Princeton, reconhece a atual era, pautada pela emergência da China, como pós-liberal, pós-norte-americana, mas sustenta que os EUA permanecerão como o centro do mundo, não só pelo avanço material e pelo papel de pivô no equilíbrio de poder global, mas pela força de suas ideias, instituições e capacidade de construir parcerias. Isso foi e continua sendo o segredo de seu poder e influência. Na sua visão, o melhor exemplo seria a guerra na Ucrânia, que permitiu aos EUA mobilizar uma rede de alianças impossível de ser replicada por China ou Rússia.
Essa vantagem comparativa norte-americana possibilitou construir, no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, uma ordem ancorada em regras multilaterais e instituições – a ONU, as instituições de Bretton Woods e as organizações multilaterais em diversas áreas – comércio, desenvolvimento, saúde pública, meio ambiente e direitos humanos. A guerra na Ucrânia, na visão de Ikenberry, abriu caminho não apenas para a consolidação da atual ordem internacional, mas para reinventá-la, com base na ampliação da coalizão entre democracias, de forma a enfrentar os desafios globais das mudanças climáticas, da saúde pública e do desenvolvimento sustentável.
A essas visões dicotômicas de Mersheimer e Ikenberry, se soma a percepção de Joseph Nye, destacado professor de Harvard, que sustenta existir um declínio relativo, mas não absoluto, do poder norte-americano. Diferentemente da armadilha de Tucídides, em que a ascensão de uma potência gera temor generalizado na rival e torna a guerra inevitável, a bipolaridade EUA-China pode levar a outro destino. Isso porque a crescente tensão atual guarda semelhança com outros ciclos temporários de ascensão e queda do poder dos EUA – 1958( Sputnik); 1973( choque do petróleo); 1989 (queda do Muro de Berlim); 1991 (desmembramento da União Soviética).
A visão atual de declínio dos EUA, segundo Nye, se alicerça em argumentos frágeis e não atribui o devido peso ao “soft power”, com indiscutível hegemonia norte-americana. Na economia, a alegada superioridade da China abstrai uma demografia em marcante declínio e está baseada numa projeção linear de crescimento do PIB nas últimas décadas, mas não na evolução do PIB per capita. Na política, a visão da ascensão da Ásia como um continente homogêneo não leva em consideração que os países da região revelam opção preferencial pelo poder norte-americano e não pelo chinês.
As três interpretações da atual geopolítica e seus possíveis desdobramentos – Mersheimer, Ikenberry e Nye – são muito divergentes, mas é possível extrair uma conclusão. Os indícios de uma nova ordem internacional deverão levar ainda muitos anos para se transformarem em realidade. Nesse cenário, é arriscado e prematuro apostar todas as fichas no declínio dos EUA e na hegemonia da China. Esse diagnóstico recomenda um reexame da atual política externa brasileira.
*Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional