Os descaminhos da política externa brasileira
Crise diplomática entre o Brasil e Israel pode reverter a boa vontade gerada internacionalmente pelo fim do governo de Jair Bolsonaro. Para embaixador, a declaração de Lula reflete personalismo, busca irresponsável de protagonismo e acentua os descaminhos de uma política externa com importante patrimônio de realizações
Crise diplomática entre o Brasil e Israel pode reverter a boa vontade gerada internacionalmente pelo fim do governo de Jair Bolsonaro. Para embaixador, a declaração de Lula reflete personalismo, busca irresponsável de protagonismo e acentua os descaminhos de uma política externa com importante patrimônio de realizações
Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi considerado persona non grata pelo governo israelense após comparar, em entrevista na Etiópia, os acontecimentos na Faixa de Gaza ao Holocausto. O episódio, que revela gestos exorbitantes de ambos os lados, coloca mais uma vez a diplomacia brasileira em rota de colisão com seu passado de equilíbrio e de defesa do interesse nacional.
Em contraste com a desastrosa política externa de Bolsonaro, a vitória de Lula significou, para a comunidade internacional, um grande alívio. A fracassada atuação do ex-presidente no plano multilateral, nas relações com União Europeia, Oriente Médio e África, bem como nas áreas de direitos humanos, meio ambiente e integração regional justificavam plenamente aquela atitude.
A percepção generalizada era de que o Brasil iria resgatar seu papel tradicional de potência média, com alguma liderança regional e interesses globais. Essa percepção vem sendo crescentemente desfeita. A irrefletida fala de Lula e o desastrado gesto de Netanyahu são polaridades eloquentes nessa frustração de expectativas. Lula, ao comparar de forma desproporcional e inadmissível os ataques israelenses na Faixa de Gaza ao Holocausto, reflete os descaminhos de nossa política externa. Netanyahu, ao considerar o presidente de um país amigo persona non grata, traduz o desespero do autoritarismo antidemocrático de seu governo decadente e próximo do fim. O que está por trás dos nossos descaminhos?
Por trás dos descaminhos está uma avaliação irrealista do peso e do lugar do Brasil no mundo. Ao longo do século XX, nosso país tinha consciência de suas fortalezas e vulnerabilidades e, em muitos momentos, soube utilizar nossas forças em favor do desenvolvimento e do interesse nacional.
O exemplo mais robusto e inteligente foi o “jogo duplo” de Vargas nos anos 1940, com apoio ora aos EUA ora à Alemanha, que evoluiu para o alinhamento com os Aliados, para nossa participação da Segunda Guerra Mundial e para o financiamento norte-americano da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Outra demonstração foi o chamado pragmatismo responsável no governo Geisel, quando uma ditadura de direita apoiou um movimento de esquerda (MPL) na independência de Angola, apesar da forte oposição dos EUA. Duas outras manifestações de política externa esclarecida ocorreram nos governos FHC e Lula. O primeiro, ao gerar credibilidade internacional para o reformismo econômico e para a consolidação democrática. O segundo, ao produzir reconhecimento às políticas sociais e à projeção do Brasil como grande economia emergente.
O atual governo Lula não só desvirtuou esse passado virtuoso, como vem desconstruindo o valioso capital de credibilidade internacional atribuído ao Brasil pós-Bolsonaro.
No plano regional, o país não soube promover a integração por meio do apoio aos regimes democráticos, ao acordo Mercosul-União Europeia e às medidas efetivas de cooperação na área ambiental. Em lugar da defesa das instituições representativas, relativizamos a democracia venezuelana e não condenamos a ditadura nicaraguense.
Na área comercial, em vez de impulsionar o acordo com a UE, aumentamos a proteção a setores improdutivos da indústria nacional e elevamos as exigências de conteúdo nacional nas compras governamentais. Apesar de sermos reconhecida potência ambiental, não conseguimos propor políticas ambientais efetivas para a região, nos contentamos com a redução do desmatamento e com posturas retóricas no âmbito do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA).
Na guerra Rússia-Ucrânia, começamos mal, ao propor a criação de um Clube da Paz, superestimando nossa capacidade de influir sobre os rumos de um conflito que vai muito além de nossas forças. Ao mesmo tempo, jogamos fora as grandes expectativas geradas pelo slogan “O Brasil Voltou”: Lula deixou de condenar a agressão russa; igualou Putin a Zelensky; e responsabilizou o Ocidente pelo prolongamento do conflito. Como contraponto a esse personalismo, na ONU, o Itamaraty adotou um padrão de votação equilibrado e coerente com a história de nossa diplomacia. A consequência inevitável desse quadro foi uma política externa ambivalente e bifronte.
Na relação EUA-China, nossa dificuldade maior reside na incapacidade de adaptação à nova ordem internacional em gestação e na falta de reconhecimento de que a segunda década do século XXI não é uma reedição de 20 anos atrás. O mundo do início dos anos 2000 refletia relativa normalidade nas relações entre EUA e China: prosperidade econômica mútua; expansão da globalização; e avanço das democracias representativas.
A realidade mais recente transformou benefícios em desvantagens e avanços em retrocessos. Enquanto no passado a fábrica chinesa contribuía para reduzir a inflação nos EUA, mais tarde passou a agravar o desemprego. As tensões avançaram para o terreno geopolítico, agravadas pela invasão da Ucrânia, que deu mais densidade à ameaça potencial de Taiwan.
Nesse novo cenário, em que China e EUA surgem como adversários econômicos e inimigos geopolíticos, o Brasil não foi capaz de rever sua política de 20 anos atrás e pratica o anacronismo.
Ficar no mesmo lugar no mundo em movimento significa retrocesso. O melhor exemplo diz respeito ao Brics. Nosso ingresso no ano 2000 foi estratégia acertada. Entretanto, a crescente hegemonia chinesa agrava o perfil antiocidental e pouco democrático do grupo, como visível em sua recente expansão de cinco para 11 membros. Por isso, o alinhamento de nossa política externa com a projeção de poder da China – declínio do dólar como moeda internacional, descrédito das instituições de Bretton Woods, e valorização do Banco do Brics – não parece corresponder ao interesse nacional.
No Oriente Médio – onde o Brasil soube preservar laços históricos robustos com os países árabes, com o povo palestino e com Israel – foram muitos os equívocos recentes. Esses ganharam magnitude com a dupla barbárie cometida, de um lado, pelo Hamas – ao invadir o território israelense, executar em torno de 1.200 pessoas com requintes de crueldade, e tomar como reféns cerca de 240 cidadãos – e, do outro, pelas Forças de Defesa Israelense (FDI), com a tragédia humanitária na Faixa de Gaza, que deixou saldo de mais de 30 mil mortos, destruição de 70% da infraestrutura e deslocamento forçado de cerca de 80% da população.
Coerente com o histórico de nossa diplomacia no Oriente Médio, o Itamaraty atuou de forma correta na guerra entre Hamas e Israel, tendo se destacado com propostas construtivas durante a Presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Apesar desse perfil, nossa política externa ficou marcada pela ambivalência, em função do recorrente contraste entre uma postura institucional equilibrada e declarações do presidente Lula geradoras de desconfiança e descrédito. Era evidente a assimetria, na retórica presidencial, entre, de um lado, o reconhecimento dos bárbaros crimes de guerra israelenses e, de outro, a falta de condenação, com o devido rigor das atrocidades praticadas pelo Hamas.
Esse desvirtuamento de alguns pilares da política externa brasileira por parte do presidente Lula encontrou seu clímax na absurda comparação entre os acontecimentos na Faixa de Gaza e o Holocausto, considerada até mesmo por críticos severos da atual política israelense como manifestação de antissemitismo. A declaração mereceu imediato apoio do Hamas, do Irã e a condenação pelo governo israelense, que a qualificou de “vergonhosa, grave e destinada a banalizar o Holocausto”. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, tende a fortalecer Netanyahu, político autoritário, hostilizado por ampla maioria de israelenses, e com os dias contados após o fim da guerra. A atitude de Lula reflete personalismo, busca irresponsável de protagonismo e acentua os descaminhos de uma política externa com importante patrimônio de realizações.
*Sergio Abreu e Lima Florêncio é diplomata, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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