Carlos Melo: O presidente pode muito, mas não pode tudo
Balanço do primeiro ano do governo do presidente Lula não pode omitir a complexidade da cena política no Brasil e no mundo nem ignorar o enorme desafio de recompor a harmonia entre os poderes, reduzindo a pressão fisiológica, recolocando a agenda nas mãos da política
Balanço do primeiro ano do governo do presidente Lula não pode omitir a complexidade da cena política no Brasil e no mundo nem ignorar o enorme desafio de recompor a harmonia entre os poderes, reduzindo a pressão fisiológica, recolocando a agenda nas mãos da política
Por Carlos Melo*
A avaliação do primeiro ano de governo não pode desconsiderar a complexidade da cena política para além dele próprio. Não basta resumir o balanço à surrada metáfora do “copo meio cheio, meio vazio”, que pouco o explica. À parte do desempenho conjuntural, é necessário buscar elementos estruturais e, no caso, disfuncionalidades.
Requer buscar fios de meadas que, rompidos, puseram a perder avanços conquistados anteriormente. Demanda indagar o que se deu com o país cujo Cristo Redentor, em 2009, decolava – na capa da revista The Economist – para depois naufragar. No conjunto do sistema político, exige considerar as condições dos demais poderes.
Caminhava-se em direção ao futuro
O sentimento normal do país é ciclotímico, oscila entre esperança e desânimo. No momento, há desalento. O Brasil regrediu em relação a si mesmo. Isso está, sim, vinculado aos problemas de um mundo em revolução, com desdobramentos na economia, na sociedade, na política e na democracia. Mas, não só. O país possui todos os problemas do mundo, agravados pelos seus próprios.
O terceiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva insere-se nessa complexidade e não convém pensá-lo isoladamente, no contexto de uma cena meramente conjuntural ou como reflexo da crise de interregno por que passa o planeta.
Da Nova República ao final da década de 2010, os governos cumpriram agendas históricas. Questionado pela peculiaridade de sua elevação à presidência da República, em meio ao caos da inflação, José Sarney, mesmo assim, entregou um país redemocratizado e uma nova Constituição.
Fernando Collor de Mello, a despeito do impeachment, “quebrou cristais” e se deu em sacrifício pedagógico ao revelar a delicada relação entre poderes, no “presidencialismo de coalizão”. Fez compreender que, no Brasil, há pouco espaço para aventuras e voluntarismos do presidente, que pode muito, mas não pode tudo.
A Itamar Franco coube a paternidade formal do Plano Real, desenvolvido por excepcional geração de economistas e operadores políticos, comandados por Fernando Henrique Cardoso. Nos seus dois mandatos, FHC consolidaria a estabilidade da moeda como valor político e social, além do econômico.
Isso tudo mais a favorável cena internacional permitiram a Lula, não se desviando do cortejo histórico, avançar na agenda da inclusão social: políticas de distribuição de renda tiveram sucesso e não se chocaram com a responsabilidade fiscal. O país passou a ser observado pelo mundo. O Cristo decolou.
Desde então, um elo se rompeu. Com Dilma Rousseff, vieram os primeiros retrocessos: leniência com as regras fiscais, voluntarismo econômico; o recrudescimento do conflito. Crise internacional e erros domésticos são mais que conhecidos e é ocioso repeti-los.
A eleição de 2014 foi a mais perniciosa da curta história democrática do país. Um clima belicoso – por parte do governo e da irascível nova oposição –, levou ao equívoco do impeachment, em 2016. Depois da tentativa de reorganização, no governo Temer, o desastre chamado Jair Bolsonaro revelou um país muito aquém da pretensão e da visão que tinha a respeito de si próprio. Em algumas áreas, o Brasil regrediu décadas. Em outras, séculos.
Saldo positivo, a despeito de problemas
É esse o processo histórico herdado por Lula, em 2023. Após uma eleição apertada, o país dividido nutria expectativas sombrias para seu terceiro mandato. Como se esperava pouco, o resultado foi até surpreendente. O desastre não ocorreu. Mas, tampouco seu desafio, ao que parece, foi compreendido: recompor o elo rompido, pacificar o país, voltar a olhar para o futuro.
Mesmo assim, há méritos. Da loucura da tentativa de golpe, no 8 de janeiro à não piora do ambiente econômico internacional, fatos aleatórios, ao final, até ajudaram. O presidente tem alguma habilidade e alguma sorte. Ninguém pode ser criticado por isso. O fato é que as expectativas, por serem baixas, foram superadas.
Se é impossível apontar grande inovação, é verdade que governo e país fluíram de modo mais tranquilo que nos anos anteriores. A grande fotografia de 2023 mostra saldo positivo, a despeito de inegáveis problemas.
Até aqui, a economia internacional tem amenizado a desconfiança com que o mercado financeiro recebeu o novo governo. A despeito das guerras e de uma nova configuração de blocos políticos, as finanças mundiais ainda favorecem países como o Brasil. Há expectativas de piora, mas, pelo menos nesse primeiro ano, o quadro não se agravou.
Após grande contestação ao seu nome, Fernando Haddad, ministro da Fazenda, saiu-se melhor que o esperado. Mesmo sem contar com o apoio do PT, revela-se mais pragmático que o imaginado. Em que pese erros de estratégia – prometer o déficit fiscal “zero” para 2024 – tem tido sucesso no trato político com o Congresso Nacional, o que falta à maior parte de seus colegas.
Objetivamente, encerra seu o primeiro ano no governo com um marco fiscal aprovado pelo Legislativo e uma positiva reforma Tributária para chamar de sua – o que não é trivial em tempos de democracia, dado todo conflito que reformas desse tipo carregam.
A supersafra e os preços internacionais das commodities têm contribuído. E mesmo as criticadas taxas de juros do Banco Central frearam a inflação. Os preços foram reduzidos. A promessa do “churrasquinho com cerveja no final de semana” já não parece ilusória.
Após cometer erros em série, Lula se reposicionou na cena internacional a partir do extraordinário discurso proferido na Abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro. Amparado na tradição da diplomacia brasileira, pode vir a se favorecer da posição estratégica no contexto de um mundo em que os blocos políticos e econômicos se realinham.
No meio ambiente, o país voltou a uma posição respeitável, contrária à devastação. O fim de todo tipo de negacionismo oficial trouxe distensão e alívio. Retorna-se à uma racionalidade comum, comedida e democrática. A despeito dos fantasmas, como na eleição argentina, o país está de “volta para o futuro”.
A tensão dos tempos de Jair Bolsonaro refluiu, o clima arrefeceu. É possível que o principal ativo de Lula seja “não ser Bolsonaro”. A sensação de normalidade e absoluta tranquilidade em relação à democracia não são realizações menores diante do que o país poderia viver fosse outro o resultado eleitoral.
PT sem filtro
Julgamento mais apurado será feito ao final do mandato, tudo ainda pode estar contaminado por grande dose de boa vontade em vista de “não ser Bolsonaro”. Mas, não se pode esquecer que governos do Partidos dos Trabalhadores são sempre dissonantes em si; possuem idiossincrasia, de fato, peculiar. Criam ruídos, fazem espumas que poderiam ser evitadas. Lutando contra moinhos de vento, colhem tempestades desnecessárias.
A legenda nasceu da reunião histórica de grupos de esquerda e de uma penca de movimentos contraditórios entre si. Acresce-se a isso que, nos últimos anos, o fortalecimento de setores identitários, cujas pautas – ainda que justas – são dispersivas. Sendo assim, o PT é um torvelinho de uma frente mais social que política, que se ressente de direção e lideranças modernas. Isso se reflete no governo.
O desaparecimento de figuras do petismo e do lulismo, antes capazes de conduzir a legenda de modo mais orgânico e maduro, se faz sentir. Eram quadros que conectavam partido e governo à sociedade; tinham senso de direção e Ética da Responsabilidade. Uns foram levados por morte; outros, por escândalos como o Mensalão (2005) ou o Petrolão (2015).
Luís Gushiken, Márcio Thomas Bastos, Marco Aurélio Garcia, José Eduardo Dutra (falecidos), José Dirceu, Antônio Palocci, Gilberto Carvalho, Ricardo Kotscho ou Luís Dulci compunham importante núcleo de avaliação e ação políticas capaz de influenciar o presidente da República, colocar freios ao esquerdismo e estabelecer estratégias produtivas.
Tratava-se de uma espécie de Estado-Maior que se dirigia diretamente ao presidente e o tratava por “você”; não douravam a realidade ou amenizavam opiniões.
Pois, hoje, o pragmatismo é bem menor, há voluntarismo e certo deslumbramento. O ambiente é reverencial e sufoca críticas; inibe a criatividade. O entorno do presidente parece crer na “infalibilidade do líder”. Tem menor capacidade de aconselhá-lo. Mais suscetível ao esquerdismo do que no passado, Lula, por vezes, exibe ares mesmo de sectarismo.
Do ponto de vista programático, partido e governo ressentem-se de projeto para além da agenda fiscal e tributária. Há lacunas de elaboração que tornam impossível costurar um corpo coeso e coerente de ideias para despertar o desenvolvimento econômico e social; oferecer outro futuro à juventude. Ou seja, um novo e original projeto nacional.
Na trincheira da economia, a contradição se manifesta mais forte. A despeito dos avanços de Haddad, ataques de membros do PT demonstram a autofagia de costume. Há, é claro, divergências ideológicas. Mas, pesa mais o escorpião da disputa interna, de olho na sucessão de Lula, em 2030 ou já em 2026.
O presidente administra pressões alternando críticas e elogios aos seus ministros, fazendo acenos ao partido. Haddad tem sido alvo dessa oscilação e, por vezes, é submetido a desgastes capazes de alterar o ânimo e as expectativas de investidores e agentes econômicos. Naturalmente, tudo compromete o desempenho do governo.
É um quadro pernicioso: além de não anular o antipetismo, afasta o governo de setores sociais e econômicos que poderiam ampliar um arco de alianças para recuperar a economia e reforçar valores democráticos; acelerar o aumento da popularidade e, com isso, levar à maior autonomia em relação à variada base no Congresso Nacional. Ao contrário, abrem-se brechas para críticas da extrema-direita e para o oportunismo fisiológico.
O país dorme melhor, é verdade. Mas fantasma de novo retrocesso transforma sonhos em pesadelos.
Hipertrofia e atrofia dos Poderes
Os problemas não param por aí. Questões mais sérias são estruturais, de ordem político-institucional. Os poderes Legislativo e Judiciário se fortalecem de modo perigoso para o sistema de freios e contrapesos que deveriam expressar. O jogo é de soma zero. A harmonia constitucional entre os poderes é afetada.
Embora diminuam o número de legendas partidárias, a fragmentação interna a cada uma delas aumenta. A interlocução é pulverizada entre parlamentares dispersos, unificados, em regra, pelas sinecuras facilitadas pelo presidente da Câmara.
Ao longo da última década, o desgaste da política e a irascibilidade do eleitor fizeram do centro político, não apenas fisiológico, sua principal vítima. Setores pragmáticos e moderados – simbolizados no velho PMDB – perderam relevância e praticamente desapareceram. O meio de campo ficou vazio; as pontas, à direita e à esquerda, estão congestionadas.
Não há “baixo clero” simplesmente porque o “alto clero” desapareceu. O resultado é um grande espaço de barganha, em que o importante da atuação parlamentar é o cargo, a emenda e a selfie para a rede social. Há exceções, é claro, mas são minoria. Não se faz “Política com P de História”, como dizia Joaquim Nabuco.
O hiperfisiologismo tem maior poder de pressão, sentindo-se menos constrangido. Pratica a coação explicitamente e a justifica como “papel do parlamentar levar recursos ao seu município”. Se considerarmos apenas aspectos lícitos dessa atuação, o deputado torna-se mero vereador federal. Troca seus votos no Parlamento pelo controle da máquina pública local. E desorganiza políticas públicas centralizadas. É o velho coronelismo apontado por Victor Nunes Leal (1949), em nova roupagem.
No Judiciário, o marco histórico é o processo do Mensalão: a autoridade dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) tem se elevado desde então. Outros fatores se somaram: a omissão do Legislativo em relação a temas polêmicos – como aborto e união homoafetiva –, e a vulgarização de Ações Diretas de Inconstitucionalidade com que as minorias parlamentares recorrem às decisões da maioria. Tudo provoca o Supremo e atiça sua proatividade.
A recente defesa da democracia o robustece ainda mais. Contra os abusos de Jair Bolsonaro, ministros do STF, normalmente dispersos, se aproximaram. Reforçou-se o espírito de corpo. A providencial ação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) impediu o colapso democrático. Mas, provocou efeitos colaterais sentidos por analistas políticos e juristas.
A “hipertrofia política” do Judiciário e do Legislativo os transforma em superpoderes que estão além do razoável e recomendável. Há elevado grau de conflito institucional. Ao mesmo tempo, em uma década, o Poder Executivo encolheu. Passa por histórica atrofia, o que num país com a cultura política do Brasil é extraordinário.
Desde os conflitos entre Dilma Rousseff e Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara, o parlamento aprimora formas de pressão negociando blindagem política em troca de nacos crescentes na participação na máquina e na apropriação de parcelas cada vez maiores do orçamento público. Sem alternativa, o Executivo cede – ou cai.
Com Jair Bolsonaro, essa situação chegou ao paroxismo, sobretudo, após a prisão de Fabrício Queiroz, em junho de 2020. Para que o desgaste do amigo não lhe comprometesse o mandato, o presidente aquinhoou o hiperfisiologismo do Centrão com espaços e recursos inéditos. O controle de ministérios importantes, o “orçamento secreto” e “as chaves do governo” – a nomeação do senador Ciro Nogueira (Progressistas-PI) para ministro-chefe da Casa Civil, em agosto de 2021, vieram na esteira desse processo.
A manutenção do poder ampliado do Legislativo – sobretudo, do Centrão – está no centro da tensão entre Legislativo e Executivo. Há continuada tentativa de “bolsonarizar” o atual governo. Tendo à frente o presidente da Câmara, Arthur Lira, líderes do Centrão impõem um processo de negociações sucessivas.
A voracidade fisiológica define uma espécie de presidencialismo de negociação contínua. Eventuais expectativas positivas com a reformas, como a Tributária, geram euforia para serem frustradas logo em seguida em razão do jogo de interesses.
Ao contrário da tradição política do país, o Executivo parece não conduzir o processo político ou agenda. Tudo bem, se fosse apenas questão de reequilíbrio entre poderes. Mas, não raro, é conduzido por interesses que residem dos outros lados da praça do Três Poderes.
A cada conquista do governo sucede-se um período de novas exigência e pressão do Legislativo; a agenda reflui. O desenvolvimento econômico e, por decorrência, a popularidade presidencial não deslancham. Há um sistema stop and go politicamente forjado, manipulado para garantir a pressão fisiológica do Legislativo.
O balanço do primeiro ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não pode omitir tamanha complexidade. Nem ignorar o enorme desafio de recompor a harmonia entre os poderes, reduzindo a pressão fisiológica, recolocando a agenda nas mãos da política. No entanto, a entressafra de lideranças políticas não permite enxergar nada disso. Por enquanto. Oxalá, o balanço do próximo ano traga novidades a respeito.
*Carlos Melo é cientista político e sociólogo, com graduação, mestrado e doutorado pela PUC-SP, e professor sênior fellow no Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa
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