Como Dilma, Temer e Bolsonaro fizeram o Brasil abrir mão do papel de líder regional
Depois de trabalhar para construir uma liderança na América do Sul durante os governos de FHC e Lula, o Brasil desistiu de guiar e representar os vizinhos. Pesquisa aponta que crise econômica e cenário global pesaram, mas que escolhas dos presidentes foram determinantes para mudança
Depois de trabalhar para construir uma liderança na América do Sul durante os governos de FHC e Lula, o Brasil desistiu de guiar e representar os vizinhos. Pesquisa aponta que crise econômica e cenário global pesaram, mas que escolhas dos presidentes foram determinantes para mudança
Por Daniel Buarque*
O Brasil pode ser entendido como um exemplo importante de como países que poderiam desempenhar um importante papel de liderança regional se tornaram cada vez mais relutantes em liderar e se distanciaram dos outros países de suas regiões. O argumento é apresentado no recente artigo acadêmico To lead or not to lead: regional powers and regional leadership, dos pesquisadores Detlef Nolte e Luis L. Schenoni, publicado pelo journal International Politics.
Segundo o estudo, após buscar intensamente o status de potência regional durante os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, desde 2011 o Brasil começou a abandonar a intenção de ter essa liderança dos países da região. Isso aconteceu em três passos:
“Primeiro, Dilma Rousseff diminuiu a política externa na agenda de seu governo. Então, Michel Temer começou a questionar a liderança regional como um objetivo, promovendo alternativas. Finalmente, Jair Bolsonaro fez campanha abertamente para se distanciar da região, abandonou radicalmente esse objetivo”, explica o trabalho.
Um dos fatores que levou a essa mudança foi a crise econômica iniciada no governo de Dilma, que levou a restrições fiscais com impacto direto nas opções de liderança regional do Brasil. Isso gerou um declínio na capacidade do Brasil de extrair e mobilizar recursos para colocar sua política externa em prática e para liderar a região. A também crise teve um efeito colateral no apoio doméstico a um projeto de liderança regional.
Além da situação doméstica, o artigo argumenta ainda que a postura do Brasil pode ter sido influenciada pelo contexto internacional. Preso entre o poder militar e político dos EUA e o poder econômico da China, os sucessivos governos brasileiros optaram por uma estratégia de seguir em frente evitando decisões controversas e mantendo um perfil discreto, evitando qualquer papel de liderança regional que pudesse levar a um envolvimento com esta competição geoestratégica abrangente e global. O distanciamento, portanto, tornou-se um dispositivo estratégico útil para evitar fricções com as grandes potências.
Ainda assim, o artigo argumenta que as mudanças na Presidência têm sido os catalisadores mais importantes da mudança na política externa e do declínio da liderança regional como um objetivo do país. Enquanto FHC e Lula foram bem-sucedidos em sua busca por liderança, a situação mudou depois que Dilma chegou ao poder, bem como com Temer. Os dois “não demonstraram o mesmo interesse na política externa, nem desenvolveram uma visão estratégica” diz. Indo adiante, Bolsonaro, articulou ainda mais claramente que a liderança regional não era um objetivo auxiliar na grande estratégia do Brasil, o que significa que o país não estava mais realmente envolvido com sua região.
Apesar do maior distanciamento do último ex-presidente, o distanciamento brasileiro da região parece ir além da postura ideológica de Bolsonaro, e pode ser rastreado até o governo de esquerda de Dilma. “Isso aponta para o papel secundário desempenhado pela ideologia” nesse processo, avalia o texto.
Apesar de rejeitar o papel de líder, o artigo argumenta que o Brasil não perdeu totalmente seu status de potência regional, e continua sendo o país mais poderoso entre os vizinhos. Isso se demonstra não pelas ações do Brasil, mas pelo impacto regional mais amplo de eventos políticos e crises nos países sul-americanos depende, em última instância, das reações do governo brasileiro. “O que mudou não foi o status do Brasil, mas sua disposição de buscar a liderança regional”, diz.
A avaliação do artigo se alinha parcialmente ao que é percebido pelas grandes potências a respeito do papel do Brasil na América do Sul. De acordo com minha pesquisa de doutorado sobre o status internacional do Brasil, os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU acreditam que o status de líder da região poderia ampliar o prestígio brasileiro de forma global, mas o país não assume este papel e por isso acaba não conseguindo alcançar reconhecimento como potência. A perspectiva das grandes potências é que o Brasil poderia ser um líder regional, mas não assume este papel.
É importante notar ainda que o trabalho não considera a atuação do terceiro mandato de Lula, iniciado em 2023, quando a atividade para liderar a região foi retomada ao menos parcialmente. O país enfrenta crises e oposição na região, mas passou a organizar encontros e ter contatos importantes com os países da América do Sul, sinalizando interesse em retomar a liderança perdida.
*Daniel Buarque é colunista e editor-executivo do portal Interesse Nacional, pesquisador no pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP), doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de livros como Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial) e O Brazil é um país sério? (Pioneira).
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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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