25 março 2024

Brics reinventado – Desafios e oportunidades para o Brasil na nova configuração

Sem poder se posicionar abertamente contrário à expansão do grupo impulsionada pela China, o Brasil recalculou sua rota, se colocou como entusiasta da ideia e defendeu o multilateralismo do sistema. Para professor, discursos e viagens de Lula demonstram as novas estratégias do país a partir do agrupamento reconfigurado

Sem poder se posicionar abertamente contrário à expansão do grupo impulsionada pela China, o Brasil recalculou sua rota, se colocou como entusiasta da ideia e defendeu o multilateralismo do sistema. Para professor, discursos e viagens de Lula demonstram as novas estratégias do país a partir do agrupamento reconfigurado

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa do Diálogo de Amigos do Brics, na África do Sul (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Por Miguel Mikelli Ribeiro*

Em 2015, no início do meu doutorado, participei de um workshop com o professor Barry Buzan na PUC-Minas, organizado pelo professor Jorge Lasmar. Durante sua palestra principal, Buzan sugeriu que o Brics deveria ser visto principalmente como um grupo de oposição ao bloco das potências ocidentais. Na ingenuidade do recém-doutorado, discordei publicamente dele, argumentando que, para mim, o Brics era mais do que ele sugeria: tratava-se, na verdade, de uma iniciativa que visava direcionar a multipolaridade para além da liderança ocidental. Nenhuma dessas duas posições é, de todo, irreal. Nas minhas palavras, refletiam o pensamento adotado pela política externa brasileira; na do professor Buzan, uma visão do que esse novo agrupamento representava para o Ocidente.

Em 2015, o Brics já ampliava seu espectro de atuação. O agrupamento tinha feito seu primeiro alargamento com a inclusão da África do Sul (em 2011) e criado sua primeira instituição formal, o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD, 2012). Além disso, o Brics ampliara sua agenda, indo além do substrato econômico inicial que motivou sua criação, como resultado da crise financeira de 2008. Isso ficou claro quando, em 2012, o agrupamento reorganizou sua agenda de trabalho em três pilares: o inicial econômico-financeiro, um cultural e um de paz e segurança (explorei a expansão da agenda de segurança no agrupamento em um artigo publicado na revista Foro Internacional em 2017, junto com colegas).

‘Se a intenção de países como a Rússia poderia indicar oposição ao Ocidente, posições como as do Brasil e da Índia eram claras no sentido de torná-lo um fórum de projeção internacional dessas potências do Sul’

Mesmo com declarações mais incisivas em relação a certas práticas patrocinadas por potências ocidentais, até então, o Brics não havia adotado uma postura que configurasse, diretamente, um caráter imediato de oposição ao Ocidente. Se a intenção de países como a Rússia poderia indicar a utilização do agrupamento como instrumento de oposição ao Ocidente, posições como as do Brasil e da Índia eram claras no sentido de torná-lo um fórum de projeção internacional dessas potências do Sul, visando legitimar uma multipolarização não confrontacionista. Resultados políticos importantes foram, de fato, colhidos a partir da concertação desses Estados, notadamente as revisões de cotas do FMI e do Banco Mundial.

Isso muda, em certa medida, em 2023, com a inclusão dos novos membros. No ano passado, a nova composição do Brics passou a incluir, além dos cinco membros originais, outros seis: Etiópia, Emirados Árabes, Irã, Arábia Saudita, Egito e Argentina. A inclusão do Irã, em particular, confere certa validade ao argumento de Buzan. O fato de este ser um dos principais antagonistas dos EUA, por si só, já apontaria para uma guinada no caráter do grupo. Contudo, o timing dessa inclusão ganha contornos mais destacados. Ela ocorre no momento da disputa Rússia-Ocidente na Ucrânia e nas tensões entre China e os EUA, que não amainaram mesmo com o governo Biden.

Para o Brasil, a nova configuração do Brics é duplamente desafiadora. O primeiro desafio é demonstrar manter sua posição de equidistância entre as potências ocidentais e as não-ocidentais. Outro desafio tem relação com o que o agrupamento passa a implicar em sua busca por maior status internacional. Se o Brics era considerado o agrupamento das principais potências emergentes, e reemergentes, se considerarmos a Rússia, já que era composto pelas principais economias dos respectivos continentes (um traço enfraquecido já com o declínio relativo da África do Sul perante outros africanos, como a Nigéria), esse perfil torna-se questionável após a expansão.

‘O novo Brics reconfigurado é, em grande medida, uma obra chinesa’

De fato, a inclusão de Estados como a Arábia Saudita, em certo sentido, obedece a certa coerência. Todavia, a entrada não só do Irã, mas de países em crise econômica (Argentina) ou política (Etiópia) indica que o agrupamento poderia estar sendo redirecionado para outros fins, e a China surge como a grande artífice dessa reconfiguração. O novo Brics reconfigurado é, em grande medida, uma obra chinesa. Mas quais as implicações dessa nova estruturação para o Brasil?

Claramente, o Brasil se viu numa situação complexa diante da proposta dos novos membros. Por um lado, sua política externa de multilateralização do sistema internacional não abarcaria oposição à entrada de novos membros, ainda mais dado o perfil já conhecido da diplomacia durante os governos Lula. Por outro, a reconfiguração implica uma necessidade de ressignificar o agrupamento para a política externa do país. Se antes, como já mencionado, o Brics seria uma vitrine para inserir o Brasil entre as principais potências emergentes do sistema internacional, esse propósito perde força com a expansão.

Para a diplomacia brasileira, a busca por status internacional é um objetivo central há muito sedimentado na burocracia como política de Estado. Status internacional é um atributo, em certa medida, simbólico. Ser parte de um grupo restrito que tinha como principal elemento de coesão ser composto pelas tidas como principais potências emergentes do sistema internacional trazia um simbolismo importante nessa busca por maior prestígio. 

‘A expansão do Brics enfraquece o caráter simbólico do agrupamento’

Como ressaltou um importante autor contemporâneo sobre o tema, o status mais importante para uma emergente é a “igualdade simbólica” (Mukherjee). Nesse sentido, não importava tanto o Brasil não ter capacidades materiais do nível de China e Rússia (ou mesmo Índia), o importante era ser tratado como parte desse grupo seleto. A expansão do Brics, portanto, enfraquece esse caráter simbólico do agrupamento.

É verdade que o Brasil pode ainda galgar posição destacada dentro do grupo, uma espécie de liderança interna. Isso poderia servir ao objetivo, mas de uma maneira relativamente menor do que antes. Dada a impraticabilidade de se posicionar abertamente contrário à expansão, o Brasil escolheu (acertadamente) se colocar como entusiasta da ideia. O discurso de multilateralizar o sistema surgiu como mote do argumento a favor. 

Política externa significa usar estratégias para alcançar interesses nacionais, considerando constrangimentos e possibilidades. O Brasil recalculou sua rota, buscando agora retirar da nova configuração pontos positivos. As visitas do presidente Lula ao Egito e à Etiópia devem ser vistas nesse escopo. A escolha de visitar esses países, mesmo em ano eleitoral importante para o presidente, é uma demonstração das novas estratégias a partir do agrupamento reconfigurado. 

O maior símbolo da busca por status do Brasil é se tornar membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, o discurso recente em Adis Abeba do presidente, ressaltando a importância do pleito brasileiro, é uma pista de como a diplomacia nacional ressignificou a entrada dos novos membros para a política externa do país. Resta saber se desses limões, sairá, de fato, a limonada que o Brasil espera sedentamente.


*Miguel Mikelli Ribeiro é colunista do Interesse Nacional e professor de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em RI pela Universidade Estadual da Paraíba e doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco. É autor do livro Política internacional contemporânea: questões estruturantes e novos olhares.

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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Miguel Mikelli Ribeiro é colunista do Interesse Nacional e professor de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em RI pela Universidade Estadual da Paraíba e doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco. É autor do livro "Política internacional contemporânea: questões estruturantes e novos olhares".

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