O Brasil e a crise venezuelana – Uma abordagem renovada (e necessária)
Tensão na Venezuela é um desafio e uma oportunidade sem precedentes à política externa brasileira, que tem agido de forma correta. Ao tratar a questão a partir de seus riscos à democracia e à geopolítica, o Brasil reafirma seu protagonismo e valoriza seu papel na superação daquela que já se coloca como a principal crise regional deste século
Faz algum tempo que não se fala de Venezuela sem remeter à profunda crise política, econômica e humanitária que assola o país. Desde 2014, uma combinação de fatores internos e externos levou ao derretimento da economia venezuelana, que encolheu para menos de 25% do que era uma década atrás. O número de refugiados e migrantes venezuelanos, hoje, chega a quase 8 milhões, a enorme maioria buscando amparo nos países vizinhos. Em meio a um processo consistente de autocratização do regime de Nicolás Maduro, a Venezuela chegou a ter um presidente oposicionista autoproclamado, Juan Guaidó, que foi reconhecido por mais de 50 governos ao redor do mundo em 2019.
A América do Sul nunca foi exatamente uma região de estabilidade política e econômica, mas a situação da Venezuela acrescentou a essa fragilidade um importante componente geopolítico. A múltipla crise venezuelana colocou em xeque as instituições de integração regional, produziu pressões fronteiriças inéditas e arrastou o país para uma disputa entre grandes potências. Por algum tempo, Washington, com o apoio de diversos aliados latino-americanos, não escondeu seu desejo de retirar Nicolás Maduro do poder, impondo pesadas sanções ao regime. De outro lado, russos e chineses sustentam o projeto bolivariano, fornecendo-lhe armas, investimentos e mercados para a combalida indústria petrolífera da Venezuela.
Diante do esgarçamento de um dos maiores atores sul-americanos, a posição brasileira vem sendo marcada por seu caráter errático e ambíguo. Movidos pela simpatia do Partido dos Trabalhadores pelo chavismo, os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff esforçaram-se para manter a Venezuela em sua órbita, silenciando-se perante os ataques às instituições democráticas e aos direitos humanos no país vizinho e buscando integrar a Venezuela ao Mercosul.
Os presidentes que os sucederam, por sua vez, optaram por hostilizar Maduro. Valendo-se do correto diagnóstico da crise democrática venezuelana, Michel Temer suspendeu a participação do vizinho no Mercosul. Jair Bolsonaro, dando um passo além, chegou a reconhecer a presidência de Guaidó, ordenar a expulsão dos representantes do governo Maduro no país e cogitar, ao lado de Trump, uma intervenção militar na Venezuela.
Para a política externa brasileira, a crise venezuelana representa um triplo teste. Primeiro, um desafio à estabilidade regional: há pelo menos três décadas, a garantia da ordem política e econômica da vizinhança foi um dos pilares da atuação do Brasil no seu entorno. Segundo, um desafio à geopolítica sul-americana: um dos corolários da diplomacia brasileira é manter a região distante do jogo das grandes potências globais – e, sobretudo, dos interesses militares norte-americanos. Terceiro, um desafio à democracia: ainda que defenda o princípio da não-intervenção, o Brasil advoga pela necessidade da garantia dos processos democráticos na região, inclusive por meio da atuação de órgãos regionais como Mercosul e Organização dos Estados Americanos.
Quando Lula retornou ao poder, em 2023, o Brasil estava de costas para a Venezuela. A situação no país vizinho, embora grave, estava melhorando aos poucos, graças ao afrouxamento das sanções norte-americanas e à aparente melhora das condições políticas, num contexto de preparação para novas eleições presidenciais. Isso talvez explique a decisão do governo brasileiro de aproximar-se de Maduro, retomando uma relação de confiança que possibilitasse ao Brasil contribuir para a normalização política venezuelana. Além de estender o tapete vermelho a Maduro em visita oficial, em maio daquele ano, Lula criticou o persistente embargo e o “preconceito” das nações vizinhas à Venezuela. Um mês depois, em entrevista, negou o caráter autoritário do regime, alegando que “o conceito de democracia é relativo”.
Se o presidente brasileiro ganhou pontos com seu colega venezuelano, ele certamente perdeu alguns em casa. Ao bancar o autoritarismo de Maduro, relativizando seus impactos sociais e humanitários, Lula enfraquecia sua luta pela democracia e contra o radicalismo político internamente. Ainda assim, como estratégia de política externa, a proximidade com o regime poderia assegurar que o preparativo para as eleições transcorresse sem grandes surpresas. Em outubro do ano passado, o Brasil apoiou as negociações que levaram ao Acordo de Barbados, documento que garantia liberdades básicas às forças de oposição em troca do levantamento de mais sanções norte-americanas contra o país.
A despeito das controvérsias, o posicionamento de Lula é consistente tanto com os interesses estratégicos do Brasil quanto com as ambições globais do presidente. No início de seu primeiro mandato, em 2004, Lula viabilizou a liderança brasileira numa complexa operação de paz das Nações Unidas no Haiti, consolidando o Brasil como ator relevante em temas de segurança internacional. No fim de seu segundo mandato, em 2010, o petista aventurou-se, ao lado do então premiê turco Recep Erdogan, na mediação de um acordo nuclear com o Irã que garantisse o fim das sanções ao país. As negociações foram sabotadas pelas potências ocidentais, mas ajudaram Lula a lapidar sua imagem de mediador internacional e firmar o status do Brasil como potência emergente.
No retorno à Presidência, diante de um país profundamente polarizado, Lula apostou na política externa como forma de reaver parte de sua popularidade de outrora. Munido da mesma fórmula de seus mandatos anteriores e assessorado pelo experiente ex-chanceler Celso Amorim, sugeriu a criação de uma “Cúpula da Paz” para resolver a invasão russa da Ucrânia e investiu num cessar-fogo entre Israel e Hamas logo após os atentados de 7 de outubro de 2023. Ambas as tentativas foram malfadadas, sobretudo porque o mundo em que Lula agora atua é diferente daquele de 15 anos atrás, quando encerrou seu ciclo como o presidente mais popular do mundo. O Brasil tampouco é o mesmo.
Nesse sentido, os novos capítulos da crise venezuelana são tanto um desafio quanto uma oportunidade sem precedentes à política externa brasileira – e ao presidente Lula. Ao voltar os olhos para a região, o Brasil terá a chance de resgatar as dimensões de estabilidade, autonomia e democracia da América do Sul, tão caras à nossa relação com a vizinhança. Com isso, o governo brasileiro poderá mostrar que seu engajamento diplomático na mediação de crises internacionais não é mero casuísmo em busca de status ou prestígio, mas deseja, efetivamente, resolver problemas que afetam direta ou indiretamente o Brasil.
No fim do ano passado, quando Maduro decidiu reviver uma antiga reivindicação venezuelana sobre a região de Essequibo, localizada na Guiana, tornou-se incontornável o envolvimento brasileiro direto com os rumos políticos da Venezuela. A aprovação da anexação do território disputado, por meio de um referendo popular, abriu para Maduro e seus operadores militares a possibilidade de invadir o vizinho, motivado não só pela popularidade de uma demanda histórica por reparação colonial, mas também pela perspectiva de exploração de petróleo – atividade responsável pelo crescimento meteórico da economia guianense, cujo PIB triplicou nos últimos 5 anos.
Dentro e fora do governo brasileiro, muitos minimizaram os riscos de um conflito armado, alegando ser mera estratégia de mobilizar eleitores a poucos meses das eleições. Hoje, não se descarta um cenário semelhante ao da Guerra das Malvinas, de 1982, em que a ditadura militar argentina embarcou numa guerra contra o Reino Unido para impulsionar sua legitimidade. Acabou perdendo a guerra e o governo, com prejuízos duradouros ao país. Nem é preciso dizer que, para o Brasil, uma guerra ao longo de sua fronteira amazônica seria catastrófica, amplificando a crise humanitária e potencialmente trazendo ao menos duas grandes potências – os Estados Unidos e a Rússia – para o entorno estratégico brasileiro.
As preocupações poderiam ser menores, se a crise política na Venezuela estivesse administrada. Contudo, os termos negociados em Barbados foram rapidamente abandonados pelo regime, que seguiu perseguindo e barrando a candidatura de opositores políticos. A condenação do Itamaraty às medidas do governo venezuelano foi rebatida duramente pela chancelaria de Maduro, acusando a diplomacia brasileira de ingerência ao emitir opiniões “que parecem ter sido escritas pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos”.
Se o impasse já era considerável antes das eleições, ele ficou ainda mais grave após Maduro declarar sua vitória sem a devida comprovação eleitoral, sob volumosos protestos da oposição. Passado pouco mais de um mês do pleito, apesar de as autoridades eleitorais (controladas pelo regime) terem confirmado a reeleição do presidente, a recusa da apresentação das atas comprobatórias levou à desconfiança generalizada quanto ao processo. Sem qualquer surpresa, China, Rússia, Coreia do Norte, Irã, Síria, Bolívia, Nicarágua e Cuba reconheceram rapidamente a vitória de Maduro. Os países sul-americanos que falaram abertamente contra os resultados, mesmo aqueles governados pela esquerda, tiveram suas representações diplomáticas expulsas do país.
Restou ao governo brasileiro adotar uma postura de mediação construtiva. Trata-se de um delicado equilíbrio doméstico e internacional. Para dentro, Lula precisa reafirmar seu compromisso democrático e ao mesmo tempo reconhecer que em sua base de sustentação – a começar pelo próprio PT e seus militantes – existem aqueles que são simpáticos a Maduro e reconhecem incondicionalmente sua vitória. Para fora, o Brasil vem buscando a retomada das conversas entre governo e oposição para encaminhar as disputas em torno dos resultados das urnas, mas aumentando o tom das críticas ao regime de Maduro. Além da insistência pelas atas, Lula chegou a chamar o governo venezuelano, em entrevista recente, de “autoritário e desagradável” – negando, entretanto, que seja uma ditadura propriamente dita.
A ambiguidade de Lula deu ao Brasil certa latitude para propor soluções para a crise atual. O presidente brasileiro se juntou com seu colega colombiano, Gustavo Petro, na sugestão de um plano que envolvesse a realização de novas eleições, anistia geral e confiança nas instituições eleitorais venezuelanas. Apresentadas informalmente, as propostas foram duramente rechaçadas tanto por Maduro quanto pela oposição. No dia 27 de agosto, a Human Rights Watch dirigiu carta aos mandatários de Brasil, Colômbia e México (que participou das primeiras conversas sobre a Venezuela) chamando as ideias por eles aventadas de “um escárnio do princípio democrático básico”.
Formalmente, a posição oficial da aliança brasileiro-colombiana é seguir exigindo as atas de votação, sem reconhecer a vitória de Maduro. “Ambos os presidentes permanecem convencidos de que a credibilidade do processo eleitoral somente poderá ser restabelecida mediante a publicação transparente dos dados desagregados por seção eleitoral e verificáveis”, diz nota conjunta publicada no dia 24 de agosto. No mesmo dia, uma aliança de países do hemisfério, liderada pelos EUA, lançou uma declaração rechaçando a recente decisão do Tribunal de Justiça da Venezuela, aliado de Maduro, de validar sua vitória nas urnas. Aos poucos, os balões de ensaio da diplomacia brasileira vão desaparecendo – e a solução parece mais distante.
Ainda assim, a despeito de todas as dificuldades, acreditamos que a postura brasileira é correta. O Brasil é o país mais poderoso da América do Sul e, nesta posição, deve conduzir negociações que permitam o retorno à normalidade política na Venezuela, evitando que o impasse desemboque em uma conflagração civil ou mesmo num conflito regional. Ao tratar a questão venezuelana a partir de seus riscos não somente à democracia, mas também de natureza geopolítica, o governo brasileiro reafirma seu protagonismo e valoriza o papel que o presidente Lula vem buscando desempenhar na superação daquela que já se coloca como a principal crise regional deste século. Neste processo, há de se ter perseverança, coerência e uma boa dose de criatividade.
Guilherme Casarões é professor da Fundação Getúlio Vargas, doutor e mestre em ciência política pela Universidade de São Paulo e mestre em relações internacionais pela Universidade Estadual de Campinas. Coordena o Observatório da Extrema Direita
Miguel Mikelli Ribeiro é colunista do Interesse Nacional e professor de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em RI pela Universidade Estadual da Paraíba e doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco. É autor do livro Política internacional contemporânea: questões estruturantes e novos olhares.
Guilherme Casarões é professor da Fundação Getúlio Vargas, doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual de Campinas. Coordena o Observatório da Extrema Direita
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