Daniel Buarque – A política externa de Lula e a volta do “mito da multipolaridade”
Governo tem defendido a transição para um mundo multipolar, como já fez no passado, mas estudiosos argumentam que é ilusão achar que há uma difusão total do poder unipolar dos Estados Unidos. Para pesquisador, a aposta no multilateralismo pode ser um processo positivo para o Brasil mesmo sem uma crença exagerada na multipolaridade
Governo tem defendido a transição para um mundo multipolar, como já fez no passado, mas estudiosos argumentam que é ilusão achar que há uma difusão total do poder unipolar dos Estados Unidos. Para pesquisador, a aposta no multilateralismo pode ser um processo positivo para o Brasil mesmo sem uma crença exagerada na multipolaridade
Em seu discurso na Cúpula do G7, em Hiroshima, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu uma ordem mundial multipolar — em que mais Estados, além dos EUA, podem definir os rumos da política mundial — e uma representação adequada para os países emergentes nos órgãos de governança global. “A solução não está na formação de blocos antagônicos ou respostas que contemplem apenas um número pequeno de países. Isso será particularmente importante neste contexto de transição para uma ordem multipolar, que exigirá mudanças profundas nas instituições”, disse.
Desde o início do novo governo, a política externa tem buscado ampliar laços do Brasil com diferentes países e blocos, especialmente a aliança com a China, com o Sul Global, os BRICS e a América Latina, a fim de priorizar uma política externa associada a uma nova orientação internacional e multipolar.
O posicionamento de fato é importante dentro da “Doutrina Lula” de reconstrução de laços do país no exterior e de busca por uma melhora da imagem do Brasil. Após o isolacionismo de Jair Bolsonaro, e a percepção externa de que ele virou a diplomacia “de cabeça para baixo”, faz sentido Lula tentar buscar uma política externa mais “normal” para a tradição do Itamaraty. E pensar em multilateralismo — em negociações variadas, instituições e grupos de países, e contatos com vários parceiros internacionais — realmente é reconhecido como um caminho para ampliar o status brasileiro.
Mas apostar demais na multipolaridade e em uma ruptura do status quo para acomodar outras potências como o caminho para a construção de um lugar de prestígio para o Brasil no mundo pode ser problemático. Por mais que o governo acredite que o mundo se divide em uma variedade crescente de pólos de poder, muitos veem nessa abordagem uma ilusão, a crença em um “mito”. E seguir esta mentalidade pode ser um erro.
Foi justamente a crença em uma suposta multipolaridade do sistema internacional nos anos 2000 que levou a uma expansão exagerada da diplomacia brasileira, segundo o pesquisador argentino Luis L. Schenoni. Ele é o principal autor do artigo acadêmico Myths of Multipolarity: The Sources of Brazil’s Foreign Policy Overstretch, de janeiro de 2022. De acordo com esta avaliação, o Brasil acreditou que o potencial das nações emergentes era garantido por esta multipolaridade para reclamar um lugar de destaque no mundo, o que acabou causando danos ao posicionamento global do país, que apostou demais nesse processo.
Uma abordagem semelhante apareceu mais recentemente em The Myth of Multipolarity – American Power’s Staying Power, artigo publicado pela revista Foreign Affairs, em que os professores Stephen G. Brooks e William C. Wohlforth, do Dartmouth College, rejeitam a ideia de difusão do poder global. “O mundo não é bipolar nem multipolar e não está perto de se tornar nenhum dos dois”, dizem.
Segundo eles, mesmo que seja possível falar sobre uma redução do domínio global dos EUA nos últimos anos, o país continua no topo da hierarquia de poder no mundo. É só usar “as métricas certas”, dizem, em referência especialmente à economia e ao poder militar. “O poder americano ainda projeta uma grande sombra no mundo (…). O que está em questão é apenas a natureza da unipolaridade — não a sua existência”.
O artigo fala sobre a tentativa de potências como Rússia e China de valorizar a ideia de multipolaridade. E diz ainda que outras nações emergentes, como a Índia, também têm interesse em revisitar a estrutura de poder global. Para os professores, a distribuição de poder hoje é melhor descrita como “unipolaridade parcial”, em comparação com a “unipolaridade total” que existiu após a Guerra Fria.
“Para que o sistema seja multipolar, no entanto, seu funcionamento deve ser moldado em grande parte pelos três ou mais Estados aproximadamente correspondentes no topo. Os Estados Unidos e a China são, sem dúvida, os dois países mais poderosos, mas pelo menos mais um país deve estar em sua liga para que a multipolaridade exista. É aqui que as reivindicações de multipolaridade desmoronam. Todos os países que poderiam possivelmente ocupar o terceiro lugar — França, Alemanha, Índia, Japão, Rússia, Reino Unido — não são de forma alguma um par aproximado dos Estados Unidos ou da China.”
O texto não cita o Brasil, mas deixa evidente que a aposta de Lula em um mundo multipolar pode ser a repetição do mesmo erro do passado. Sem dúvida é importante o Brasil se abrir ao mundo e retomar laços com diferentes países e blocos a fim de melhorar seu prestígio ao ampliar o multilateralismo. O país não precisa abandonar totalmente a ideia de que a difusão de poder pode beneficiar potências emergentes e ampliar o seu status. Mas é importante entender a dinâmica do “mito” da multipolaridade para não achar que uma reforma das instituições e uma representação adequada para os países emergentes nos órgãos de governança global estão garantidos.
Isso não significa, claro, que o país precisa acreditar na unipolaridade americana e se alinhar totalmente ao “hegemon”. Como avaliou o professor Matias Spektor em artigo recente, ficar “em cima do muro” em momentos de tensão e polarização internacional (uma política tradicional do Brasil) pode trazer benefícios para “potências médias”. Mas reconhecer os limites da ideia de multipolaridade pode ser importante para evitar uma política que ignore onde de fato está concentrado o poder global. Entender esta realidade é um primeiro passo na formação de uma política externa que possa maximizar a projeção do Brasil no mundo e consolidar um papel relevante para o país na política internacional. A aposta no multilateralismo pode ser um processo positivo para o Brasil mesmo sem uma crença exagerada na multipolaridade.
*Daniel Buarque é colunista e editor-executivo do portal Interesse Nacional, pesquisador do pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. É jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor dos livros “Brazil, um país do presente” (Alameda) e “O Brazil É um País Sério?” (Pioneira).
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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