Rubens Barbosa: Reunião de presidentes da América do Sul tem resultado limitado
Encontro que buscava integração da região terminou ofuscado por uma discussão ideológica divisiva e sem perspectiva de ampliar a articulação entre os países. Para embaixador, após destaque exagerado dado à Venezuela e ao apoio a Maduro, a ideia da união e da reconstrução na política externa ficou tão difícil quanto a união e a reconstrução no âmbito doméstico
Encontro que buscava integração da região terminou ofuscado por uma discussão ideológica divisiva e sem perspectiva de ampliar a articulação entre os países. Para embaixador, após destaque exagerado dado à Venezuela e ao apoio a Maduro, a ideia da união e da reconstrução na política externa ficou tão difícil quanto a união e a reconstrução no âmbito doméstico
Por Rubens Barbosa*
As prioridades na política externa definidas pelo governo Lula a partir de janeiro foram acertadas. A volta do Brasil ao cenário internacional, a prioridade ao meio ambiente e a mudança de clima e a importância da América do Sul são políticas que estão de acordo com o interesse nacional. O problema é a falta de uma visão estratégica de médio e longo prazo.
No contexto da nova política de aproximação e prioridade com a América do Sul, o presidente Lula decidiu retomar a iniciativa do presidente FHC de promover reunião presidencial para coordenar políticas de maior aproveitamento dos recursos da região. FHC convocou a primeira reunião presidencial da América do Sul na história em 2000 e a segunda em 2002.
Respondendo à liderança de Lula e ao peso do Brasil na região, todos os presidentes compareceram, menos a presidente do Peru, impossibilitada de viajar pela grave crise política de seu país.
O documento final, enxuto, com nove parágrafos, indica a dificuldade para se conseguir apoio entre todos os presidentes. O Consenso de Brasília ressalta que a região está comprometida com a democracia e os direitos humanos, o desenvolvimento sustentável e a justiça social, o Estado de direito e a estabilidade institucional, a defesa da soberania e a não interferência em assuntos internos.
Enfatiza que a integração regional deve ser parte das soluções para enfrentar os desafios compartilhados da construção de um mundo pacífico; do fortalecimento da democracia; da promoção do desenvolvimento econômico e social; do combate à pobreza, à fome e a todas as formas de desigualdade e discriminação; da promoção da igualdade de gênero; da gestão ordenada, segura e regular das migrações; do enfrentamento da mudança do clima, inclusive por meio de mecanismos inovadores de financiamento; da promoção da transição ecológica e energética, a partir de energias limpas; do fortalecimento das capacidades sanitárias; e do enfrentamento ao crime organizado transnacional.
Busca o incremento do comércio e dos investimentos entre os países da região; a melhoria da infraestrutura e logística; o fortalecimento das cadeias de valor regionais; a aplicação de medidas de facilitação do comércio e de integração financeira; a eliminação de medidas unilaterais; e o acesso a mercados por meio de uma rede de acordos de complementação econômica, tendo como meta uma efetiva área de livre comércio sul-americana. Estimula iniciativas de cooperação sul-americana, com um enfoque social e de gênero, em áreas que dizem respeito às necessidades imediatas dos cidadãos; transformação digital, defesa, segurança e integração de fronteiras, combate ao crime organizado transnacional e segurança cibernética.
Os presidentes decidiram manter um diálogo regular para impulsionar o processo de integração da América do Sul e projetar a voz da região no mundo. Deverão voltar a reunir-se oportunamente para repassar o andamento das iniciativas de cooperação sul-americana e determinar os próximos passos a serem tomados.
O resultado do encontro pode ser considerado como limitado e longe do que o presidente Lula pretendia. O Brasil propôs a reunião e definiu a agenda, sem a garantia de que todos os seus pontos sejam atendidos. moeda única, Unasul, a criação de uma nova instituição, defendidos pelo Brasil, não foram acolhidos. Isso faz parte do jogo.
A América do Sul está desintegrada e sem perspectiva de avançar no processo de integração no curto prazo. Nem o prazo de 120 dias para os chanceleres apresentarem sugestões de ação aos presidentes foi aceito. Faltaram propostas concretas que respondam aos desafios atuais das transformações globais.
Ao invés disso, prevaleceu a discussão ideológica divisiva. Em nível presidencial, as reuniões são realizadas para anunciar decisões, não para discutir. Por outro lado, o discurso público de Lula, desatualizado e ideológico, supervalorizou a Venezuela, gerou divisão política e pôs em risco a liderança que o Brasil deveria exercer na região. Também na área externa, Lula pode perder prestígio e credibilidade.
Na véspera do encontro, Lula recebeu o presidente da Venezuela, Maduro, em uma visita “histórica”. Do ponto de vista bilateral, interessa ao Brasil contar com Caracas para ampliar as relações comerciais, regularizar as relações financeiras, contar com a energia de Guri para Roraima, apoiar as questões ambientais amazônicas e controlar crimes transnacionais (drogas e armas) na fronteira.
Em meio a muitas críticas por apoiar com ênfase o governo de Caracas e não fazer qualquer reparo ao autoritarismo reinante, Lula disse que Maduro teria de mudar a narrativa, construída contra a Venezuela por alguns países, em especial pelos EUA. Uma interpretação benévola do que disse Lula indicaria um pedido para que o regime venezuelano procurasse normalizar as relações políticas internas para permitir uma eleição presidencial aberta, livre e transparente em 2024, mas não foi o que aconteceu. Os presidentes do Chile e do Uruguai, além da oposição venezuelana, explicitaram suas reservas quanto às declarações de Lula, o que, na prática, significa que o apoio a Maduro recebeu críticas da direita e da esquerda.
A exemplo do que aconteceu na visita a Argentina e na reunião do G7, o marketing do encontro foi negativo. O fato de Maduro ter recebido uma recepção especial, antes do encontro com os demais presidentes, ofuscou a reunião e colocou em segundo plano a importância da união e integração regional. Se a festa fosse depois do encontro com todos os presidentes, a repercussão teria sido diferente.
A ideia da união e da reconstrução na política externa ficou tão difícil quanto a união e a reconstrução proposta para a política interna.
*Rubens Barbosa foi embaixador do Brasil em Londres e em Washington, DC., é diplomata, presidente do Instituto Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e coordenador editorial da Interesse Nacional.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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