Brasil precisa reerguer a sua parceria estratégica com a China em benefício dos brasileiros e do planeta
Viagem de Lula a Pequim é uma oportunidade para o Brasil fortalecer a equidistância entre a China e os EUA, potências rivais que são parceiras estratégicas do país. Ao reerguer as relações com o gigante asiático a partir de uma agenda propositiva em clima e meio ambiente, o Brasil poderá gerar benefícios não apenas para a população e os biomas brasileiros, mas para o planeta como um todo
Viagem de Lula a Pequim é uma oportunidade para o Brasil fortalecer a equidistância entre a China e os EUA, potências rivais que são parceiras estratégicas do país. Ao reerguer as relações com o gigante asiático a partir de uma agenda propositiva em clima e meio ambiente, o Brasil poderá gerar benefícios não apenas para a população e os biomas brasileiros, mas para o planeta como um todo
Por Maiara Folly e João Cumarú*
Como parte das principais diretrizes da política externa do novo governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem sinalizando ser necessário não apenas retomar e fortalecer as relações com parceiros estratégicos ao redor do mundo, mas também manter uma postura equidistante entre as duas maiores potências globais, os Estados Unidos e a China.
À medida que a rivalidade geopolítica entre esses dois países se acirra, a equidistância será fundamental para garantir a autonomia do Brasil no cenário internacional, reduzindo os riscos de que oportunidades para avançar os interesses nacionais em áreas estratégicas, como comércio, investimentos e transferência de tecnologias, sejam minadas caso o país se veja forçado a escolher um lado na disputa entre os dois gigantes.
Em sua recente viagem a Washington, DC., nos EUA, Lula ampliou o diálogo político com o governo norte-americano. Durante conversa com o presidente Joe Biden, abordou temas que foram além das relações econômicas bilaterais, como a necessidade de ampliar a cooperação contra a extrema-direita e a busca pela paz na Ucrânia. Também avançou em uma área em que o Brasil nem sempre considerou como elemento central do seu papel no mundo: a cooperação em clima e meio ambiente. Como resultado, os Estados Unidos anunciaram a intenção de prover financiamento ao recém-reativado Fundo Amazônia.
Apesar de nenhuma quantia específica ter sido anunciada oficialmente, o endosso dos EUA à iniciativa trata-se de um gesto político significativo. É um voto de confiança ao compromisso do governo brasileiro de retomar com seriedade o combate ao desmatamento na Amazônia, podendo gerar um efeito catalisador para que outras grandes economias contribuam para o fundo.
Esse tipo de iniciativa poderia fazer parte da estratégia de equidistância que o Brasil deve adotar em sua relação com os EUA e a China. O gigante asiático também deveria ser convidado a contribuir para o Fundo Amazônia. Afinal, embora não seja o único destino de nossas exportações, a China é hoje o maior importador de produtos brasileiros associados ao desmatamento, como a carne e a soja. É fundamental, portanto, fortalecer a cooperação Brasil e China em esforços de proteção e conservação das florestas.
A visita prevista do presidente Lula a Pequimoferece uma janela de oportunidade para que isso ocorra sem que os dois países precisem começar do zero. Parceiros estratégicos desde 2012, Brasil e China já possuem algum histórico de cooperação em temas de clima e meio ambiente. Por exemplo, a parceria bilateral de mais de três décadas na área de satélites hoje alimenta tecnologias usadas no monitoramento de florestas brasileiras.
No âmbito das negociações climáticas, ambos integram o arranjo BASIC (Brasil, África do Sul, Índia e China), que deu peso diplomático ao princípio que se tornou central em negociações globais sobre o clima, o de “Responsabilidades Comuns porém Diferenciadas”. Ou seja, a ideia de que todos os países possuem responsabilidades, mas os desenvolvidos com histórico poluidor devem arcar com a maior parte dos investimentos necessários ao equilíbrio climático do planeta. No escopo do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), desde 2015 existe um grupo de trabalho que reúne anualmente os ministros de meio ambiente desses países. O tema da sustentabilidade também constitui elemento central da agenda de financiamento à infraestrutura do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS.
Ou seja, embora lacunas persistam, já há por onde se começar para avançar a cooperação entre os dois países em clima e meio ambiente, áreas que só tendem a ganhar força no Brasil, na China e no mundo à medida que os efeitos climáticos se agravam e forçam os países a agir.
Não é à toa que, para fortalecer a credibilidade no mundo, a China tem buscado mostrar que é capaz de implementar mudanças concretas, tanto no plano doméstico quanto na sua política externa. Em setembro de 2020, o Presidente Xi Jinping anunciou a meta de alcançar a neutralidade em carbono até 2060, que veio seguida de um plano de redução de emissões batizado de “1+N”, com ênfase em reajustes à estrutura industrial e matriz energética chinesa. Em nível internacional, a China demonstra cada vez mais preocupação com os efeitos climáticos e socioambientais da iniciativa de fomento ao desenvolvimento e infraestrutura Cinturão e Rota — da qual o Brasil não é membro, mas que já tem alcance considerável na América Latina e Caribe: 21 países da região integram plenamente a iniciativa.
Mas como o Brasil pode se beneficiar dessa conjuntura e se engajar mais diretamente com a China nas questões climáticas e ambientais?
Um bom ponto de partida seria o lançamento de uma declaração política conjunta sobre o tema, nos moldes do que fizeram os Estados Unidos e a China. Apesar de disputas econômicas e fortes tensões geopolíticas, inclusive ao redor de Taiwan, diálogos entre o enviado especial presidencial para o clima dos EUA, John Kerry, e seu homólogo chinês, Xie Zhenhua, renderam um comunicado conjunto, publicado em abril de 2021. Nele, os dois países se comprometeram a cooperar entre si e com demais nações em respostas urgentes à crise climática — além de almejarem fortalecer sua cooperação em instâncias e marcos multilaterais que lidam com o tema, como a convenção da ONU para o clima e o Acordo de Paris.
Um ano e meio depois, ao final da 27ª Conferência da ONU para o clima (COP 27), realizada em dezembro de 2022 na Escócia, os dois países anunciaram uma Declaração Conjunta sobre como fortalecer a ação climática durante os anos 2020. No texto, Pequim e Washington reafirmam a intenção de “preencher lacunas” nos esforços globais contra a crise climática e especificam algumas áreas concretas para pautar tal cooperação, como políticas para incentivar a descarbonização e eletrificação de alguns setores, além de iniciativas nas áreas de economia circular e de mitigação do gás metano.
A declaração também afirma a intenção de se engajarem, de forma colaborativa, no apoio à eliminação do desmatamento ilegal global “por meio do cumprimento efetivo de suas respectivas leis que proíbem importações ilegais”.
Longe de representarem uma solução única ideal, declarações como essa criam momento político, contribuem para construção de confiança e podem servir como ponto inicial para construção de uma agenda positiva de mais longo prazo voltada ao enfrentamento da crise planetária.
O Brasil não precisa espelhar a iniciativa, mas usá-la como inspiração para construir uma postura mais propositiva em relação à China. Brasília poderia propor a Pequim uma declaração conjunta fundamentada em interesses comuns, incluindo o objetivo de promover cadeias produtivas livres do desmatamento e outros crimes ambientais e de violações de direitos humanos, inclusive contra povos indígenas e comunidades tradicionais. Além de contribuir para proteção de biomas ameaçados, um comércio pautado em cadeias bem rastreadas e livres de ilícitos ajudariam a promover a segurança alimentar, uma das preocupações existenciais do Partido Comunista Chinês e tema prioritário também ao Brasil.
Na mesma linha, o anúncio poderia reforçar a intenção de avançar a cooperação em prol do incentivo à implementação da Convenção de Minamata sobre o Mercúrio. O tratado, ratificado por ambos os países, visa proteger a saúde humana e o meio ambiente das emissões antropogênicas de mercúrio e compostos derivados, comumente usados no garimpo do ouro e com efeito altamente nocivo às cadeias alimentares, ao meio ambiente e às populações locais, em especial as comunidades indígenas. Embora a China não esteja dentre os principais importadores de ouro do Brasil, é o maior fornecedor de mercúrio globalmente. Nesse sentido, é importante que a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN), principal mecanismo de diálogo bilateral, seja fortalecida em sintonia com os conceitos de proteção ambiental e crescimento verde.
Do ponto de vista do clima, a declaração pode servir para que ambos reconheçam a urgência de tomarem medidas concretas para fortalecer o enfrentamento da crise climática, em conformidade com o princípio de Responsabilidades Comuns Porém Diferenciadas. Mais amplamente, esse compromisso deve abarcar os esforços de implementação e as negociações multilaterais no escopo das três Convenções da ONU que tiveram origem no Rio de Janeiro em 1992: os acordos sobre clima, biodiversidade e desertificação. A declaração poderia ainda construir uma ponte para o apoio público da China à candidatura do Brasil de sediar COP 30, uma ambição já anunciada pelo presidente Lula.
Brasil e China poderiam, ademais, sinalizar o intuito de não apenas aprofundar a cooperação entre si, mas também de engajar outros países em desenvolvimento em projetos concretos de cooperação Sul-Sul e triangular em áreas tais como adaptação climática, conservação do meio ambiente da biodiversidade, transição energética, agricultura de baixa carbono e monitoramento de florestas por satélites. Por fim, a declaração conjunta poderia formalizar o interesse de colaborar proativamente no esforço de elevar ainda mais a agenda de infraestrutura verde e sustentável no âmbito do Novo Banco do BRICS.
Naturalmente, esse tipo de iniciativa não ocorre em um vácuo ou da noite para o dia. No caso dos EUA e da China, os enviados Kerry e Xie já haviam se reunido virtualmente 30 vezes, e ao menos quatro vezes presencialmente, antes de identificarem prioridades comuns que pudessem ser anunciadas de maneira pública pelos dois países, que estão mais acostumados a ocupar as manchetes em função de sua rivalidade.
Já no caso do Brasil, apesar de constrangimentos e canais de diálogo estremecidos nos últimos quatro anos em função de uma política externa irresponsável, o país se beneficia de um histórico de cooperação pragmático e amistoso com o gigante asiático. Além disso, em reunião com o enviado especial da China para o clima, Xie Zhenhua, durante a COP27, em novembro de 2022, o presidente Lula já retomou o diálogo em vistas ao fortalecimento de relações para lidar com preocupações ambientais em comum entre os dois países. Ao buscar reerguer sua parceria estratégica com a China a partir de uma agenda propositiva em clima e meio ambiente, o Brasil poderá gerar benefícios não apenas para a população e os biomas brasileiros, mas para o planeta como um todo.
*Maiara Folly é Diretora Executiva da Plataforma CIPÓ, um instituto de pesquisa dedicado a temas de clima, governança e relações internacionais. Folly lidera projetos de pesquisa e iniciativas de advocacy nas áreas de clima, crimes ambientais, paz e segurança, governança global e política externa. Obteve o mestrado pelo Departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford e formou-se em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro.
João Cumarú é Pesquisador Pleno na Plataforma CIPÓ e Mestrando em Política e Diplomacia Chinesa na SIRPA (复旦大学, Fudan University, China). Bacharel e Mestre em Ciência Política pela UFPE. Pesquisador Associado e Curador de Matrizes Energéticas e Meio Ambiente da CEASIA UFPE.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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