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Interesse Nacional
06 junho 2024

Entre o mundo que coloca os EUA em primeiro lugar e a ordem global chinesa

O modelo da China oferece uma alternativa à ordem liderada pelos EUA e é atraente para muitos, mas levanta preocupações sobre direitos humanos e valores democráticos, já a abordagem trumpista ameaça criar um mundo mais anárquico e instável

Donald Trump e Xi Jinping durante encontro em 2019 (Foto: Trump White House Archived)

Em um mundo cada vez mais definido por visões concorrentes de governança global, os Estados Unidos e a China apresentam modelos marcadamente diferentes. O projeto ambicioso do Presidente chinês Xi Jinping visa reformular a ordem global através de uma estrutura multipolar ancorada em valores e interesses chineses. Em contraste, uma abordagem America First, defendida por figuras como o ex-presidente e virtual candidato Donald Trump, defende uma política externa mais interessada na visão americana do mundo, o que poderia alterar significativamente o cenário internacional.

As duas versões para uma nova ordem global em um futuro próximo foram temas de artigos recentes na revista Foreign Affairs. A pesquisadora Elizabeth Economy escreveu sobre a “ordem alternativa da China”, indicando os avanços do país e as ações que os EUA devem tomar em oposição ao país. Já o professor Hal Brands analisou o que poderia acontecer se Trump voltasse ao poder e o mundo passasse a ser guiado por uma política externa que colocasse os EUA acima dos outros países.

‘Nova ordem chinesa enfatizaria a soberania absoluta, os direitos humanos determinados pelo Estado e o desenvolvimento como chave para resolver problemas globais’

Nesse contexto, a visão de Xi Jinping para uma nova ordem mundial é apresentada como abrangente e assertiva. Ele proclamou a China como um “país grande, confiante, autossuficiente, aberto e inclusivo”, enfatizando seu papel na criação da maior plataforma mundial para cooperação internacional e na reforma do sistema global. Sua visão—encapsulada na Iniciativa do Cinturão e Rota, na Iniciativa de Desenvolvimento Global, na Iniciativa de Segurança Global e na Iniciativa de Civilização Global—busca estabelecer uma “comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade”. Esta nova ordem enfatizaria a soberania absoluta, os direitos humanos determinados pelo Estado e o desenvolvimento como chave para resolver problemas globais, desafiando a dominância do dólar dos EUA e promovendo a tecnologia chinesa.

A Foreign Policy avalia que o modelo da China é atraente para muitos, especialmente no Sul Global. Regimes não democráticos encontram validação na abordagem chinesa, enquanto democracias menores veem uma oportunidade para maior influência e benefícios da globalização. Mesmo grandes potências democráticas são convidadas a considerar se o sistema atual liderado pelos EUA aborda adequadamente os desafios contemporâneos ou se as propostas da China oferecem uma alternativa mais viável. Os extensos esforços diplomáticos da China, com suas numerosas embaixadas e envolvimento global ativo, reforçam ainda mais sua influência. Sua resposta às sanções ocidentais à Rússia, promovendo a desdolarização e exemplificada pelo aumento do comércio com a Rússia em renminbi, sublinha seu compromisso em reduzir a hegemonia econômica dos EUA.

No entanto, o sucesso de Pequim em transformar a retórica global não se traduziu necessariamente em mudanças estruturais amplas, diz. Embora muitos países expressem insatisfação com a ordem internacional atual—citando sua incapacidade de lidar com pandemias, mudanças climáticas e desigualdade econômica—o modelo chinês ainda enfrenta ceticismo, especialmente em relação à sua implementação real e às implicações para os direitos humanos universais e a governança democrática.

Por outro lado, a perspectiva de uma ordem mundial baseada no America First apresenta um conjunto diferente de desafios. Esta abordagem ganha força no país e postula que os EUA priorizam seus próprios interesses sobre as responsabilidades globais. Tal mudança marcaria uma dramática saída de 80 anos de estratégia americana, que buscou moldar uma ordem liberal benéfica ao mundo em geral.

“Em um mundo America First os EUA se tornariam mais agressivos em certos assuntos, enquanto se preocupariam menos em manter normas globais, fornecer bens públicos e proteger aliados distantes’

Uma política America First não significaria completo isolacionismo, segundo a análise. Em vez disso, os EUA se tornariam mais agressivos em certos assuntos, enquanto se preocupariam menos em manter normas globais, fornecer bens públicos e proteger aliados distantes. Esta política externa mais autocentrada provavelmente se tornaria menos baseada em princípios e mais pensada como um jogo de soma zero, com os EUA exercendo seu poder sem a mesma responsabilidade que caracterizou seu engajamento pós-Segunda Guerra Mundial.

As consequências dessa mudança poderiam ser graves. Uma política externa dos EUA mais focada poderia levar a um ambiente global mais caótico e violento. Estados vulneráveis, como a Ucrânia, poderiam sofrer com uma agressão autocrática aumentada, e a desordem contida pela hegemonia dos EUA poderia ser liberada. Embora os EUA possam se sair relativamente bem no curto prazo devido às suas vantagens geográficas e econômicas, as repercussões de longo prazo poderiam ser severas. O colapso da ordem global eventualmente obrigaria os EUA a se engajarem, mas de uma posição mais fraca, semelhante à sua experiência após a Primeira Guerra Mundial.

Em última análise, o apelo de America First reside em seus benefícios imediatos para os EUA, mas esse ganho de curto prazo viria à custa da estabilidade e ordem globais de longo prazo. A fricção econômica internacional e a instabilidade geopolítica resultantes de um recuo dos EUA poderiam arrastar o crescimento americano e exacerbar conflitos domésticos. Além disso, à medida que autocracias poderosas ganham terreno, o panorama ideológico e estratégico poderia mudar de maneiras prejudiciais aos interesses dos EUA.

A leitura dessas duas visões contrastantes das ordens mundiais chinesa e America First destacam as complexidades e os riscos da política global contemporânea. O modelo da China oferece uma alternativa à ordem liderada pelos EUA, atraente para muitos, mas que levanta preocupações sobre direitos humanos e valores democráticos. Enquanto isso, uma abordagem trumpista ameaça criar um mundo mais anárquico e instável, minando a própria ordem liberal que beneficiou os EUA e seus aliados por décadas. 

Para um país intermediário na hierarquia global e que tradicionalmente não se alinha com nenhum lado em disputa pela hegemonia global, como o Brasil, os dois cenários se apresentam problemáticos. 

Uma ordem mundial chinesa pode parecer atraente para a defesa do multilateralismo feita pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, mas poderia colocar em risco a capacidade do país de se manter independente e continuar tendo laços econômicos, políticos e culturais com o rival norte-americano. Por outro lado, o mundo dominado por uma política trumpista poderia até abrir oportunidades para o Brasil se colocar como um ator de peso em uma governança global mais descentralizada, mas o enfraquecimento do multilateralismo também fecharia portas que o país tende a usar para construir prestígio no mundo como um importante articulador global.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Tags:

China 🞌 Democracia 🞌 Diplomacia 🞌 EUA 🞌 Geopolítica 🞌 Governança global 🞌

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