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Interesse Nacional
05 abril 2023

Mandado de prisão do TPI contra Vladimir Putin: um grande dilema para a África do Sul

Convidado para participar da Cúpula dos BRICS, tribunal diz que Putin deveria ser preso ao chegar ao país, mas medida afetaria as importantes relações entre Rússia e países africanos. Governo de Pretória pretende equilibrar cuidadosamente suas obrigações com o TPI, responsabilidades domésticas e suas relações historicamente amistosas com a Rússia

Convidado para participar da Cúpula dos BRICS, tribunal diz que Putin deveria ser preso ao chegar ao país, mas medida afetaria as importantes relações entre Rússia e países africanos. Governo de Pretória pretende equilibrar cuidadosamente suas obrigações com o TPI, responsabilidades domésticas e suas relações historicamente amistosas com a Rússia

Os presidentes sul-africano, Cyril Ramaphosa, e russo, Vladimir Putin, na primeira Cúpula Rússia-África, em 2019 (Foto: GCIS)

Por Sascha-Dominik (Dov) Bachmann*

O Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu um mandado de prisão internacional para o presidente russo, Vladimir Putin, por supostos crimes de guerra relacionados à deportação ilegal de crianças da Ucrânia para a Rússia. Tais atos são crimes de guerra sob dois artigos do Estatuto de Roma, que estabeleceu o tribunal.

Mandados de prisão do TPI contra chefes de estado em exercício são raros.

Putin pode ser preso, se pisar em qualquer um dos 123 estados signatários do estatuto. Destes, 33 são estados africanos. A questão pode vir à tona em agosto, quando a África do Sul deve sediar a 15ª cúpula dos BRICS: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, em Durban.

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Como chefe de um estado membro, Putin foi convidado a participar. Mas, como membro do tribunal, a África do Sul é obrigada, de acordo com o Artigo 86 do estatuto do TPI e pela lei interna, a cooperar totalmente com a prisão do presidente russo.

Esta não é a primeira vez que o país enfrenta esse dilema.

Em 2015, o presidente sudanês Omar Al Bashir visitou o país para participar de uma cúpula de chefes de estado da União Africana. Em termos de obrigações do TPI, a África do Sul foi obrigada a prender Al Bashir, que havia sido indiciado por violações do direito humanitário internacional e dos direitos humanos na região sudanesa de Darfur. O governo, então sob a presidência de Jacob Zuma, recusou-se a prendê-lo, alegando imunidade de processo por ocupar o cargo de chefe de estado sob o direito internacional.

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O mandado de prisão contra Putin colocou o governo do presidente Cyril Ramaphosa entre a cruz e a espada. Cumprir com suas obrigações domésticas e internacionais ao executar o mandado de prisão alienaria a Rússia. Isso teria consequências bilaterais –o país ainda é considerado amigo pelo governante Congresso Nacional Africano com base no apoio da União Soviética durante a luta contra o apartheid–, bem como ramificações dentro dos BRICS, dados os fortes laços de Moscou com Pequim.

É razoável argumentar que o governo de Ramaphosa gostaria de agir com cuidado para evitar tais tensões.

Por outro lado, acolher Putin, enfatizando assim a política externa independente da África do Sul, faria com que o país perdesse credibilidade internacional.

Um efeito provável é que a África do Sul pode perder termos comerciais preferenciais. Por exemplo, poderia comprometer o tratamento dado às exportações para os EUA sob a Lei Africana de Crescimento e Oportunidades (AGOA). A AGOA foi usada recentemente como uma ferramenta de punição contra a Etiópia, Gâmbia e Mali por “mudança inconstitucional nos governos” e “violações grosseiras dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente”.

É importante ressaltar que o comércio da África do Sul com os EUA excede em muito o comércio com a Rússia.

O dilema

Quando o governo Zuma se recusou a prender Al Bashir, colocou o governo em maus lençóis judiciais. A Suprema Corte de Apelação da África do Sul considerou que havia violado as leis internacional e doméstica.

Após a decisão da Suprema Corte de Apelação, o governo de Zuma notificou o secretário-geral das Nações Unidas de sua intenção de se retirar do Estatuto de Roma. Este movimento imprudente foi contestado no Tribunal Superior de Pretória. Decidiu que o aviso de retirada era inconstitucional devido à ausência de aprovação parlamentar prévia. Consequentemente, o governo “retirou-se da retirada”.

Em 2017, o TPI concluiu que a África do Sul havia falhado em suas obrigações sob o Estatuto de Roma para com o tribunal ao não prender e entregar Al Bashir. O tribunal, no entanto, decidiu não prosseguir com o assunto por razões pragmáticas. Também argumentou que encaminhar a África do Sul ao Conselho de Segurança das Nações Unidas por descumprimento “não seria uma maneira eficaz de promover a cooperação futura”.

Caso Putin participasse da próxima cúpula do BRICS e o governo de Ramaphosa não o prendesse, isso significaria que a África do Sul estava desrespeitando a legislação doméstica, bem como sua própria constituição. O Artigo 165 (5) da constituição do país deixa claro que o governo está vinculado a ordens e decisões judiciais.

Como a África do Sul deve responder ao dilema?

No momento, a resposta do governo não é clara. Por um lado, o porta-voz de Ramaphosa disse que o país estava ciente de suas obrigações de prender Putin e entregá-lo ao TPI.

Por outro lado, Naledi Pandor, ministra das Relações Exteriores, confirmou o convite a Putin para participar da reunião do BRICS. Ela observou que o gabinete teria que decidir como responder em vista do mandado do TPI.

O governo gostaria de equilibrar cuidadosamente suas obrigações com o TPI, responsabilidades domésticas e suas relações historicamente amistosas com a Rússia. A menos que esteja determinado a desafiar suas próprias decisões judiciais e leis, existem opções disponíveis para evitar outra rodada de condenações internacionais, e isso ajudaria a evitar possíveis batalhas judiciais da sociedade civil por descumprimento de leis e decisões judiciais do próprio país.

Opções

Em primeiro lugar, a África do Sul deve continuar a convidar a Rússia para a cúpula. Mas, por via diplomática, pede que a delegação russa seja chefiada pelo seu chanceler, Sergei Lavrov. Lavrov tornou-se essencialmente o rosto da Rússia no cenário internacional desde o início da guerra na Ucrânia.

Em segundo lugar, durante a pandemia de Covid-19, ficou claro que a presença física em reuniões internacionais de chefes de estado poderia ser substituída pela presença virtual. A Assembleia Geral da ONU estabeleceu uma boa referência para isso quando os chefes de estado enviaram declarações em vídeo devido a restrições pandêmicas. Putin poderia participar da cúpula do BRICS virtualmente.

A necessidade de assinatura da documentação da cúpula pelos chefes de estado não é um impedimento para o comparecimento virtual. Putin pode assinar os documentos eletronicamente ou após a cúpula, se for necessária uma assinatura não eletrônica.

A bola está agora com o governo sul-africano. A esperança é que tome a decisão certa, uma que seja do melhor interesse do país e de seu povo –não da Rússia ou de países como os EUA, especialmente porque nenhuma das grandes potências é signatária do estatuto do TPI. Nenhum dos dois deve prescrever à África do Sul o que ela deve decidir.

Mais importante ainda, o governo não deve atropelar suas próprias leis e decisões judiciais. O cumprimento da constituição deve ser a prioridade. Tomar uma decisão que seja do interesse da África do Sul e de seu povo também forneceria orientação aos outros 32 estados africanos signatários do TPI, caso eles se deparem com um dilema semelhante no futuro.


*Sascha-Dominik (Dov) Bachmann é professor de direito na University of Canberra

O artigo teve coautoria de Sasha-Lee Stephanie Afrika, advogado da Alta Corte da África do Sul e ex-professor da Stellenbosch University e da University of Johannesburg.


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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