03 abril 2023

Sergio Abreu e Lima Florêncio: O México de hoje (López Obrador) imita o Brasil de ontem (Bolsonaro)

Com trajetórias políticas distintas, os dois países passaram por paradoxo de viverem processos semelhantes apesar de terem governos de esquerda e de extrema-direita. Para embaixador, democracias em processo de consolidação são muito mais frágeis do que supunham seus analistas, e populismos de diferentes colorações ideológicas são igualmente nocivos à democracia

Com trajetórias políticas distintas, os dois países passaram por paradoxo de viverem processos semelhantes apesar de terem governos de esquerda e de extrema-direita. Para embaixador, democracias em processo de consolidação são muito mais frágeis do que supunham seus analistas, e populismos de diferentes colorações ideológicas são igualmente nocivos à democracia

Andrés Manuel López Obrador, presidente do México, e Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil (Fotos: PresidenciaMX/Agência Brasil)

Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*

México e Brasil – as maiores economias, as maiores populações e os países de maior influência global da América Latina – tiveram trajetória histórica muito distinta. O Brasil, monárquico e escravista no século XIX, nunca viveu uma revolução radical. Em contraste, o México republicano e instável, foi berço da primeira grande revolução do século XX, a Revolução Mexicana de 1910. Apesar dessas visíveis diferenças, nos últimos quatro anos, surpreendentemente, o regime de esquerda de Andrés Manoel López Obrador (AMLO) demonstra marcantes semelhanças com a extrema-direita brasileira de Jair Bolsonaro. Assim, estamos diante de uma intrigante identidade entre diferentes. Como explicar tão profundo paradoxo?

Essa contradição se torna ainda mais contundente ao examinarmos a biografia política dos dois presidentes. Bolsonaro foi durante 28 anos um inexpressivo deputado do baixo clero, uma espécie de sindicalista dos suboficiais do Exército. Contribuíram de forma decisiva para sua vitória: o impeachment de Dilma Rousseff; aqueda de 7% do PIB em dois anos; o desgaste dos políticos tradicionais; a desorganização das forças de centro (PSDB); a repercussão dos escândalos da Lava Jato; a queda da popularidade do Partido dos Trabalhadores (PT); a prisão de Lula; e o crescimento do antipetismo.    

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Em contraste, a eleição de AMLO resultou de sua destacada liderança no partido que, com grande penetração nas populações mais pobres, melhor refletia o imaginário coletivo mexicano – o Partido da Revolução Democrática (PRD). A vitória eleitoral em 2018 resultou de sua sólida base popular, potencializada pela desgastada hegemonia do PRI, pela corrupção e pelo desprestígio do Partido da Ação Nacional (PAN), no poder de 2000 a 2012.

O paralelo anterior entre os dois personagens ressalta suas diferenças, mas não revela as surpreendentes semelhanças entre o México de López Obrador e o Brasil de Bolsonaro.

A primeira semelhança é o ostensivo estelionato eleitoral. Ambos instrumentalizaram o liberalismo, defendido com ardor na campanha, mas taxativamente negado no governo. Bolsonaro se anunciava um liberal econômico, mas não político, pois admirava o regime autoritário dos militares. López Obrador advogava um liberalismo político, mas não econômico – liberdades civis, eleições justas e democracia representativa. Eram bandeiras destinadas a antagonizar o PRI, símbolo histórico do autoritarismo, sem alternância no  poder fora do partido, com eleições regulares, mas sempre fraudadas. Isso inspirou a frase de Vargas Llosa – “O México inventou a  ditadura perfeita”.

A segunda e perigosa semelhança entre o ícone da esquerda mexicana e o mito circunstancial da extrema direita brasileira está ligada aos ataques frontais dos dois populistas aos fundamentos da democracia – instituições representativas, equilíbrio entre os poderes e Estado de direito. Os desmandos de Bolsonaro dispensam apresentação e derivam tanto de sua biografia política, como do perfil de seus fiéis apoiadores.

Se o antagonismo entre Bolsonaro e democracia era uma crônica de desfecho anunciado, no caso de López Obrador é diferente – desencanto para setores progressistas da sociedade mexicana e decepção para a esquerda renovada e lúcida da América Latina, como Gabriel Boric, no Chile, e Gustavo Petro, na Colômbia.

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López Obrador, como candidato do novo partido Morena – Movimento de Renovação Nacional, foi eleito Presidente da República em 2018 e alcançou, com alianças, maioria no Congresso. Com tamanha vantagem, AMLO inaugurou então sua trajetória autoritária – aparelhamento das instituições do Estado, perseguição de adversários políticos, esvaziamento de agências reguladoras e de blindagem de órgãos de controle.

A Pemex se transformou na empresa petrolífera mais endividada do mundo.  Sua gestão da pandemia da Covid-19 resultou em mais de 600 mil mortos, uma das maiores taxas de mortalidade do mundo. Seu estilo personalista agravou a corrupção e as violações de direitos humanos. A conclusão é inescapável –qualquer semelhança entre López Obrador e Bolsonaro não é mera coincidência.

Duas áreas com semelhanças exponenciais entre o México de hoje, com López Obrador, e o Brasil de ontem, com Bolsonaro, são a justiça eleitoral e a militarização do governo.

A chamada “transição democrática” do México nos anos 2000 consistiu em construção institucional, ou seja, promover governança responsável, transparência e autonomia em relação à presidência Imperial que foi a marca das sete décadas de hegemonia do PRI.

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Um dos eixos centrais desse processo foi a criação do Instituto Nacional Eleitoral (INE), responsável pelo fim das seculares fraudes eleitorais e caracterizado por Denise Dresser como “a joia da coroa” da transição democrática mexicana. O INE vem sendo objeto de cortes substanciais de orçamento, de pessoal e de atribuições, que o impedem hoje de monitorar as eleições.  A Suprema Corte também é vítima de condenações públicas, com perseguição a juízes e ministros. Mas semana passada ela teve uma vitória: conseguiu suspender as reformas inconstitucionais do INE, que haviam sido aprovadas pelo partido Morena no Congresso. Esses ataques sistêmicos às instituições se somam à crescente militarização do governo, com as Forças Armadas assumindo papel político e econômico sem precedentes na história mexicana.

Talvez seja possível extrair duas conclusões dessa estranha e inesperada convergência de contrários – um regime de esquerda e outro de extrema-direita. A primeira é uma constatação – democracias em processo de consolidação, como Brasil e México, são muito mais frágeis do que supunham seus analistas. A segunda é uma lição – populismos, de diferentes colorações ideológicas, são igualmente nocivos à democracia.


*Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra. 

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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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