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Interesse Nacional
29 maio 2023

Sergio Abreu e Lima Florêncio: Quo Vadis América Latina? O pêndulo de novo nos extremos?

Com uma série de crises, América Latina de hoje reflete, em grande medida, transformações ocorridas três décadas atrás, com o chamado Consenso de Washington. Para embaixador, instabilidades podem fazer com que a oscilação do poder repita sua preferência pelos extremos

Com uma série de crises, América Latina de hoje reflete, em grande medida, transformações ocorridas três décadas atrás, com o chamado Consenso de Washington. Para embaixador, instabilidades podem fazer com que a oscilação do poder repita sua preferência pelos extremos 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante sessão de Abertura da VII Cúpula da CELAC, em Buenos Aires (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*

Para onde vai a América Latina? Um sopro de avanço democrático surgiu no último ano — vitória das instituições sobre o autoritarismo no Brasil; eleição de uma esquerda renovada e jovem no Chile; e vitória do primeiro presidente da esquerda moderada na Colômbia.

Transcorrido um ano, essa onda democrática ainda prevalece, mas com dose maior de ceticismo. A expectativa de um governo Lula de união nacional, com liberais em postos-chave, perdeu peso. A desaprovação da nova constituição chilena e a recente eleição de Assembleia Constituinte com maioria da direita radical aumentaram as preocupações sobre o cenário político. Na Colômbia, maiores dúvidas surgiram com medidas recentes de Gustavo Petro, como a dissolução do gabinete, a convocação de um governo de emergência, a suspensão da trégua com dissidentes das Farc, o aumento do intervencionismo e a substituição do competente ministro da economia José Antonio Ocampo.

A esse quadro de incertezas deve-se acrescentar a trajetória do México, onde a eleição de uma tradicional liderança de esquerda, protagonizada por AMLO (Andrés Manoel López Obrador), consolida um rumo de militarização política, de combate à democracia e às instituições representativas (sobretudo ao INE – Instituto Nacional Electoral), e de perseguição a opositores políticos. Surpreendentemente, a política seguida pelo ícone histórico da esquerda mexicana (AMLO) se parece cada vez mais com o desastroso “mito” da extrema-direita brasileira – Bolsonaro.   

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/sergio-abreu-e-lima-florencio-mexico-de-hoje-lopez-obrador-imita-o-brasil-de-ontem-bolsonaro/

No campo historicamente autoritário e repressivo – Nicarágua, Venezuela e Cuba – prevalece crescente endurecimento do regime. A perseguição e a expulsão do país de centenas de opositores políticos segue sendo a marca do governo de Daniel Ortega. No poder desde 2013, Nicolás Maduro enfrenta prolongado declínio econômico e social – aumento da pobreza, da violência e da fome. A prevalência desse quadro, entretanto, não resultou na destituição de Maduro, que se tem fortalecido na presidência. Em Cuba, no seu primeiro mandato, iniciado em 2018, Canel enfrentou a pior crise dos últimos 30 anos, produto das consequências da pandemia, agravamento das sanções econômicas norte-americanas e de equívocos de política econômica. Apesar disso, demonstrou ser possível manter o socialismo sem Fidel nem Raúl Castro. 

O Cone Sul, além do resgate da democracia com a eleição de Lula, reflete perigosa guinada para a direita radical no Paraguai, com a vitória de Santiago Peña, do Partido Colorado; o Uruguai é o solitário exemplo, na América do Sul,  de alternância no poder de governos de corte social democrata, com a eleição de Lacalle Pou; e o descontrole econômico ladeira abaixo da Argentina, com conflitos entre presidente e vice presidente, taxa de inflação superior a 100%, recurso ao FMI, e provável vitória de um candidato de extrema-direita.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fernanda-nanci-goncalves-crises-na-america-do-sul/

No mundo andino, o agravamento da tradicional instabilidade política marcou o Equador, nos últimos anos; o resiliente caos político continuou a dominar o Peru; e a queda abrupta da popularidade da esquerda foi o traço dominante em 2023 no Chile.  

No Equador, em meados de maio deste ano, o presidente de direita Guillermo Lasso, ameaçado de um impeachment quase certo, dissolveu a Assembleia Nacional, fechou a Suprema Corte e governará durante 90 dias com base em decreto executivo. Um ano atrás, havia se livrado de outro processo de impeachment, seguido de enormes manifestações de protesto, lideradas por indígenas apoiadores do ex-presidente, atualmente exilado, Rafael Correa.

No Peru, em fins de 2022, o então presidente Pedro Castillo, de origem indígena e líder do sindicato de professores, ordenou o fechamento do Congresso e o controle da Corte Suprema. Imediatamente foi derrotado por 101 votos contra 5 no Congresso e destituído de suas funções. Assumiu a vice-presidente Dina Boluarte, mas grandes manifestações dominam as principais cidades do país desde então, com forte liderança de indígenas e camponeses fiéis a Castillo. A turbulência política virou crônica: nos últimos seis anos, o Peru teve cinco presidentes.

No Chile, Gustavo Boric, jovem liderança de uma esquerda nova e moderada, sofreu abrupta queda de popularidade e, neste mês de maio, enfrentou a derrota, por 61% dos eleitores, do projeto de uma nova Constituição, apoiada pelo governo e destinada a substituir a outorgada por Pinochet. O cenário político se agravou com a recente eleição de nova Assembleia Constituinte com maioria de membros da direita radical: 23 cadeiras do Partido Republicano, em contraste com apenas 15 da coalizão governista, Unidad para Chile.

Diante desse quadro de instabilidade e indefinição de rumos, cabe a pergunta Quo vadis América Latina?

‘A América Latina de hoje reflete, em grande medida, transformações ocorridas três décadas atrás, com o chamado Consenso de Washington’

A América Latina de hoje reflete, em grande medida, transformações ocorridas três décadas atrás, com o chamado Consenso de Washington. Sua agenda, fundamentada no  crescimento baseado em reformas do mercado (market oriented reform ), promoveu mudanças insuficientes na economia e frustrantes na sociedade. Segundo diagnóstico de diversos acadêmicos, como Kenneth Maxwell, a maior fragilidade do Consenso residiu na liberalização e estabilização da economia antes de ampla reforma institucional. Ou seja, a viabilidade de reforma do mercado depende da construção de uma estrutura de governança democrática.

Apesar dessa correta advertência, vale registrar que, no caso brasileiro, mesmo sem “ampla reforma institucional”, o reformismo econômico de Fernando Henrique Cardoso, seguido de políticas sociais efetivas de Lula, combinadas com o boom das commodities, resultou em um ciclo de crescimento desde meados dos anos 1990 e ao longo da década de 2000. Outros países da região também experimentaram um ciclo de crescimento acelerado, o que, em certa medida, condicionou a combinação de esquerda democrática e de lideranças demagógicas. Esse fenômeno ficou conhecido como a “onda rosa”, que prevaleceu no período entre 1998 e 2015.

Aquela combinação, no passado, de expressivo crescimento econômico com regimes democráticos cedeu lugar a um prolongado ciclo de virtual estagnação. Assim, entre 2011 e 2013, o crescimento médio do PIB das sete principais economias da América Latina alcançou 3,4%, seguidos por modestos 0,9% nos anos 2013-2019, e por cerca de 1% em 2023. Para esse declínio econômico e democrático, contribuiu a eleição de presidentes identificados com a direita – Lenine e Lasso no Equador, Macri na Argentina e Bolsonaro no Brasil.  Ao longo da última década, o PIB per capita da região permaneceu estagnado.

Esse quadro de baixo crescimento e alta desigualdade teve como corolário o desencanto com a política tradicional e a eleição de governos de esquerda em 12 dos 19 países da região, o que corresponde a 92% da população, ou a 90% do PIB da América Latina.

Quo vadis América Latina? Diante da crescente instabilidade acima apontada, a atual hegemonia de regimes de esquerda na região não tem sua continuidade assegurada. As dificuldades enfrentadas pelos atuais governantes são muito graves no plano doméstico, além de um contexto internacional onde prevalece a combinação de baixo crescimento econômico, democracias iliberais e fortalecimento de movimentos nacionalistas de direita radical. Infelizmente, para o bem-estar da maioria da população e para os defensores de uma social-democracia liberal, o pêndulo poderá repetir sua preferência pelos extremos.


*Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra. 


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

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