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Interesse Nacional
15 maio 2023

Sergio Abreu e Lima Florêncio: Vargas, Lula e o dilema da neutralidade na política externa

Diplomacia brasileira diante da guerra na Ucrânia reedita o desafio encarado pelo país 80 anos antes, diante da Segunda Guerra Mundial. Ao contrário dos êxitos colhidos por Vargas naquela época, diplomata avalia que a atual reviravolta na PEB tem o potencial de comprometer uma trajetória diplomática reconhecidamente bem sucedida e pode se tornar anacrônica e equivocada

Diplomacia brasileira diante da guerra na Ucrânia reedita o desafio encarado pelo país 80 anos antes, diante da Segunda Guerra Mundial. Ao contrário dos êxitos colhidos por Vargas naquela época, diplomata avalia que a atual reviravolta na PEB tem o potencial de comprometer uma trajetória diplomática reconhecidamente bem sucedida e pode se tornar anacrônica e equivocada

Os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, durante conversa virtual (Foto: Governo da Ucrânia)

Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*

A política externa brasileira (PEB) do governo de Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta hoje o dilema da neutralidade entre uma superpotência com sinais de declínio da supremacia (EUA) e outra em ascensão econômica e geopolítica (China). Desafio semelhante viveu o país 80 anos atrás, quando Getúlio Vargas praticou por alguns anos política de equidistância entre os Aliados da Segunda Guerra Mundial e as potências do Eixo. A neutralidade de Vargas, rompida no momento correto, rendeu extraordinários frutos –econômicos (indústria siderúrgica) e geopolíticos (democracia interna com autonomia externa). Que benefícios poderão advir da declarada neutralidade de Lula?

O atual tensionamento do conflito entre as duas superpotências inexistia 20 anos atrás. Os EUA estimulavam, então, a inserção internacional da China, e essa seguia o script de Deng Xiaoping: abertura e crescimento econômico com low profile político.

Entretanto, nas últimas décadas, os conflitos entre as duas superpotências ganharam virulência. As democracias nos países avançados são ameaçadas por populismos de corte autoritário alimentados por modesto crescimento econômico. Em contraste, o modelo chinês exibe exuberância econômica, fechamento político e crescente influência internacional. A crise das democracias representativas se torna mais aguda, e o questionamento do modelo liberal, mais amplo. Isso se acentuou com a ascensão de Donald Trump e Xi Jinping.

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A invasão russa da Ucrânia exacerbou essas rivalidades e produziu uma nova clivagem: Defensores da Ucrânia, próximos de EUA e União Europeia, versus aliados da Rússia, reduzida a virtual satélite geopolítico da China. É nesse mundo fraturado que o Brasil se declara neutro.

Um paralelo Vargas – Lula pode ser útil. Como a Alemanha dos anos 1930, a China da primeira década do século XXI também foi a grande potência emergente que suplantou os EUA como nosso principal parceiro. A China absorve hoje mais de 30% de nossas exportações, em contraste com os EUA, responsáveis por menos de 10%. Nos anos 1930, a Alemanha implantou conosco um comércio de compensação em moeda local, muito semelhante ao atual projeto sino-brasileiro de dispensar o uso do dólar no nosso intercâmbio com a China. 

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Analogias entre ontem e hoje continuam a fazer sentido. Atualmente, a crise das democracias representativas (EUA e UE) contrasta com o vigor econômico e a irradiação geopolítica da China. Nos anos 1930, uma Europa ainda ferida pela Grande Depressão se sentia inferiorizada diante dos regimes totalitários.

Naquele contexto internacional, era natural para Vargas dar maior vigor ao comércio e ao diálogo político com a potência emergente (Alemanha), como de fato aconteceu. Atitude semelhante, também vista com naturalidade, teve Lula em relação à China 20 anos atrás.

No caso de Vargas, o início da Segunda Guerra Mundial, o ataque a Pearl Harbour e, finalmente, a entrada dos EUA no conflito foram os fatos geradores do jogo duplo e de seu término. No caso de Lula, também foi a invasão russa da Ucrânia e a consequente reação de EUA, União Europeia e Otan o ponto de inflexão na relação do Brasil com EUA e China, que assumiu a forma de uma declarada política de neutralidade diante do conflito.

‘Vargas fazia um discurso pró-potências do Eixo e poucos dias depois o negava. Lula repete esse padrão em relação à guerra da Ucrânia’

As atitudes de Vargas diante das reações à sua política pendular em relação aos EUA e à Alemanha, no início dos anos 1940, guardam também muita semelhança com as hesitantes afirmações e negativas de Lula sobre nossa declarada neutralidade na guerra da Ucrânia. Vargas fazia um discurso pró-potências do Eixo e poucos dias depois o negava. Lula repete esse padrão em relação à guerra da Ucrânia.

Uma dimensão relevante no paralelo entre a diplomacia pendular de Vargas e a declarada neutralidade de Lula diz respeito ao círculo decisório dos dois presidentes. Na política externa do Estado Novo prevaleciam figuras com matizes ideológicas distintas e até antagônicas, como um liberal democrata –o chanceler Oswaldo Aranha–, e seu antípoda, um nacionalista autoritário simpatizante do fascismo –o chefe do Estado Maior general Góes Monteiro. Assim, Vargas dispunha de um repertório com visões favoráveis e contrárias a ambos os lados do conflito.

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‘O hiper foco no protagonismo internacional do país coloca em plano secundário a visão da diplomacia como instrumento para o desenvolvimento e para a defesa do interesse nacional’

Em contraste, a política externa de Lula, nos dois primeiros e no atual mandato, é dominada pela figura do chanceler Celso Amorim. Seu êxito, como chanceler nos dois primeiros mandatos de Lula, condiciona a atual PEB a reeditar aquela   trajetória do passado. Seu hiper foco no protagonismo internacional do país coloca em plano secundário a visão da diplomacia como instrumento para o desenvolvimento e para a defesa do interesse nacional.  

Vargas foi sempre o árbitro final de uma diplomacia dotada de diversidade entre seus assessores mais diretos. Isso favorecia o contraditório e a mudança de rumos, como de fato aconteceu, com o abandono do jogo duplo entre EUA e Alemanha. Diferentemente desse cenário, a hegemonia do chanceler de fato de Lula, ao estimular a reedição do passado, dificulta mudança de rumos e eleva os riscos de praticar uma política externa exitosa no passado, mas que pode revelar-se anacrônica e equivocada no presente, diante do tensionamento da rivalidade EUA x China que, inexpressivo há 20 anos , assume hoje a centralidade das relações internacionais.

‘A identificação crescente do Brasil com o ideário do BRICS consolida a percepção dos EUA e da União Europeia de uma excessiva inflexão pró China de nossa política externa’

A participação do Brasil no BRICS certamente projetou o país no plano internacional. Mas a identificação crescente do Brasil com o ideário do BRICS, obviamente muito moldado pelas pretensões geopolíticas chinesas, consolida a percepção dos EUA e da União Europeia de uma excessiva inflexão pró China de nossa política externa.

Uma consideração final sobre o paralelismo entre Vargas e Lula diz respeito à forte influência sobre eles exercida por dois conflitos internacionais –a Segunda Guerra Mundial e a guerra na Ucrânia

‘Assim como o ingresso dos EUA na Segunda Guerra Mundial sepultou a diplomacia pendular de Getúlio, a guerra da Ucrânia teve peso semelhante, mas na direção oposta, sobre a política externa de Lula’

Assim como o ingresso dos EUA na Segunda Guerra Mundial sepultou a diplomacia pendular de Getúlio, a guerra da Ucrânia teve peso semelhante, mas na direção oposta, sobre a política externa de Lula. Até então reconhecido como o grande protagonista de uma diplomacia que resgatou a imagem do Brasil no mundo, ao sepultar o desastroso retrocesso de seu antecessor, Lula passou a ser objeto de fortes críticas urbi et orbi por suas declarações e iniciativas a respeito da guerra na Ucrânia.

Se Pearl Harbour aposentou uma virtuosa diplomacia pendular e gerou dividendos tangíveis para a industrialização e para o lugar do Brasil no mundo, a invasão russa da Ucrânia, ao provocar uma reviravolta na PEB, tem o potencial de comprometer uma trajetória diplomática reconhecidamente exitosa.


*Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra. 

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/sergio-abreu-e-lima-florencio-mudancas-e-desafios-da-politica-externa-de-lula/

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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