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Interesse Nacional
20 abril 2023

Brasil ‘voltou’ para cima do muro, mas corre risco de ser visto como problema por todos os lados da tensão global

Visitas de Lula aos EUA e à China, bem como declarações sobre a guerra, mostram que o país está voltando a reforçar sua tradicional busca por autonomia e equidistância, sem se comprometer com nenhum lado em disputas geopolíticas. Em um contexto de crescente polarização e pressão por alinhamentos, posição pode acarretar riscos de insatisfação generalizada com o país 

Visitas de Lula aos EUA e à China, bem como declarações sobre a guerra, mostram que o país está voltando a reforçar sua tradicional busca por autonomia e equidistância, sem se comprometer com nenhum lado em disputas geopolíticas. Em um contexto de crescente polarização e pressão por alinhamentos, posição pode acarretar riscos de insatisfação generalizada com o país 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante Entrevista à CNN Internacional, em Washington (EUA) (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Por Daniel Buarque*

“O Brasil voltou”, declarou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva logo após assumir o poder, no início do ano. Apesar de não dizer com essas palavras, os movimentos do país nos primeiros meses mostram que o Brasil voltou a se posicionar em cima do “muro” que separa as grandes divisões e disputas geopolíticas de um mundo em crescente polarização. Voltou a se colocar como “neutro”, como o país que é amigo de todos, defensor da paz, mas que não se compromete com ninguém, e acaba sendo criticado por todos. 

A postura faz sentido dentro do contexto histórico do país, mas cria uma tensão visível nesta “volta” do Brasil. A visita aos EUA, parceiro histórico do país, e a defesa da democracia, não foram lá muito bem vistas pelos chineses. A visita à China, maior parceiro comercial do Brasil atualmente, a recepção ao chanceler russo e as declarações de Lula sobre a guerra na Ucrânia foram criticadas como “profundamente problemática” para os americanos, que acham que o país está se alinhando a seus adversários. 

Por mais que os movimentos possam ser vistos como polêmicos, ou pareçam indicar que o país oscile entre um lado e o outro, no fundo eles podem ser interpretados como interligados, e mostram que o Brasil de Lula desde o primeiro dia acenou a uma postura internacional de retomada de relações com todos os países em busca do interesse nacional e sem as aproximações ideológicas defendidas por Bolsonaro. Mas isso levou o país a dar sinais que as potências veem como contraditórios no atual contexto de polarização. 

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/daniel-buarque-lula-a-guerra-a-neutralidade-e-a-busca-por-um-lugar-entre-as-grandes-potencias/

Desde a eclosão da guerra na Ucrânia, ficou evidente que alguns países (especialmente no Sul Global) tentariam evitar um alinhamento, mas também ficou claro que haveria uma pressão crescente por uma escolha de lados na disputa entre potências. 

A busca pela equidistância é uma posição tradicional do país, que já foi mantida pelo próprio petista durante seus oito anos de governo (2003-2010), mas que havia sido abandonada por Bolsonaro, então faz sentido falar em “retorno”. Mas o mundo mudou. Hoje as hostilidades e tensões entre os dois lados é crescente, bem como a cobrança deles por uma decisão de o Brasil escolher quem vai apoiar. E manter essa “neutralidade”, equilíbrio em cima do muro, tem se tornado cada vez mais difícil e perigoso.

‘A busca pela equidistância é uma posição tradicional do país, mas o mundo mudou. Hoje as hostilidades e tensões entre os dois lados é crescente, bem como a cobrança deles por uma decisão de o Brasil escolher quem vai apoiar’

A tradição e as vantagens da ‘neutralidade’

A tradição do Itamaraty de busca por autonomia e de não se alinhar nas disputas geopolíticas parte da ideia que, sem escolher um lado, o Brasil teria vantagens ao poder manter boas relações com todos, sem se comprometer e sem criar problemas econômicos, políticos ou de segurança. Em busca do interesse nacional e da sua própria soberania, o país abre mão de se meter em questões que podem comprometer o seu posicionamento independente.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/jacob-shively-lula-enfrentara-pressao-para-escolher-lado-em-disputas-internacionais/

Há quem defenda que esta pode ser a estratégia mais eficiente para navegar na crescente polarização global. Em um artigo publicado recentemente pela revista Foreign Affairs, o ex-secretário de Relações Exteriores de Singapura Bilahari Kausikan avalia que a postura do Brasil pode estar correta. 

‘É importante para os países menores adotar uma política externa marcada por nuances na tentativa de navegar por essa disputa entre grandes potências’

Segundo ele, é verdade que a guerra na Ucrânia tornou o mundo mais incerto e perigoso, e que a rivalidade entre EUA e China deve se tornar o fato definitivo das relações internacionais do século XXI. Mesmo assim, para ele, falar em “nova Guerra Fria” é um erro preguiçoso, pois o mundo está mais interconectado economicamente e a competição deve ocorrer dentro de um mesmo sistema, ao contrário do que ocorreu no passado. Assim, é importante para os países menores adotar uma política externa marcada por nuances na tentativa de navegar por essa disputa entre grandes potências. 

“Diante dessas realidades, a maioria dos países tentará maximizar sua autonomia dentro dos limites de suas circunstâncias específicas. Eles não vão querer alinhar todos os seus interesses em uma direção ou outra. Eles tentarão alinhar diferentes interesses em diferentes domínios na direção mais vantajosa, e suas escolhas não necessariamente ficarão restritas apenas às duas grandes potências, levando-as a buscar coalizões e parcerias com diversos atores”, diz.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/guerra-mudou-o-mundo-e-o-brasil-tera-que-escolher-um-lado-na-nova-polarizacao-global/

Também na Foreign Affairs, Matias Spektor argumenta que essa estratégia de ficar em cima do muro é usada por países do Sul Global não apenas como uma forma de extrair concessões materiais, mas pelo desejo de evitar ser pisoteado em uma briga entre China, Rússia e Estados Unidos.

Além disso, ele avalia que há uma convicção de que os Estados Unidos têm sido hipócritas em suas relações com o mundo em desenvolvimento, e a ideia de que este tipo de estratégia pode ajudar a elevar o status desses países em um possível mundo multipolar. Segundo Spektor, entretanto, a competição de segurança em sistemas multipolares pode levar as grandes potências a criar hierarquias mais rígidas ao seu redor, limitando as chances de estados menores expressarem suas preferências.

Os riscos do não-alinhamento

Essa busca brasileira pela autonomia e por uma posição de equidistância e neutralidade nas grandes disputas globais é conhecida por diplomatas e líderes estrangeiros há tempos, conforme demonstrei no artigo acadêmico A Country on the Fence, publicado em 2020. Até mesmo o ex-presidente americano Barack Obama se refere (de forma um tanto frustrada) a esta posição brasileira em sua autobiografia.

Pode-se argumentar que isso já favoreceu o país, mas a neutralidade não resulta na ausência de problemas. 

‘Ficar “em cima do muro” não é bem visto por nenhum dos dois lados’

Uma questão importante é que ficar “em cima do muro” não é bem vista por nenhum dos dois lados, que veem uma oscilação nos posicionamentos do país em política externa e passam a desconfiar permanentemente do Brasil, que pode perder com isso. 

Isso se torna ainda mais arriscado no momento atual por conta de declarações e posicionamentos públicos do presidente e membros do governo a respeito de questões críticas, como a guerra –como disse o embaixador Marcos Azambuja, talvez fosse mais fácil o Brasil parar de tentar se envolver em um conflito que não lhe diz respeito.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fausto-godoy-lula-a-russia-a-ucrania-e-a-otan/

Para completar, a postura “neutra” é um claro entrave para um outro interesse tradicional da política externa brasileira: a busca por status e por um lugar à mesa das grandes decisões da política global. Ser uma potência, alegam os países que já detêm esta posição na hierarquia global, requer assumir a responsabilidade de tomar decisões e escolher lados. Não é possível ser um líder sem ter um posicionamento claro que vá além de uma defesa um tanto ingênua da paz.

Neste mundo mais polarizado e mais perigoso, a analogia sobre o posicionamento do Brasil em cima do muro pode ser complementada com a percepção de novos riscos. Enquanto as potências brigam, quem tenta se equilibrar de forma equidistante entre elas corre o risco de tomar pedradas dos dois lados.


*Daniel Buarque é colunista e editor-executivo do portal Interesse Nacional, pesquisador do pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. É jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor dos livros “Brazil, um país do presente” (Alameda) e “O Brazil É um País Sério?” (Pioneira).


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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