13 junho 2024

Postura do Brasil sobre a Ucrânia revela mudança estratégica arriscada com foco na economia

Estudo avalia a posição do governo Lula em relação ao conflito e a rejeição em condenar a ação da Rússia e indica que interesses econômicos em um aprofundamento nas relações com o Sul Global podem explicar o realinhamento diplomático do país

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu assessor Celso Amorim durante videochamada com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Em artigo publicado no início desta semana, o assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para política internacional, Celso Amorim, argumentou que o Brasil tem seguido sua tradição diplomática de respeito ao direito internacional ao tratar da guerra da Rússia na Ucrânia. Amorim diz que o país condenou a invasão em votações na ONU e em declarações do presidente. Para ele, é preciso evitar cair em “narrativas simplificadas” e encarar os possíveis caminhos para a paz com base no realismo e na negociação entre as partes envolvidas.

A percepção de analistas de política externa no Brasil e no exterior, entretanto, tem sido bem diferente do proposto por Amorim. O Brasil tem sido criticado no Ocidente, e seu posicionamento é visto por muitos como sendo mais favorável à Rússia do que à Ucrânia.

Para o professor Felipe Krause, da Universidade de Oxford, a postura do Brasil em relação à guerra na Ucrânia não é apenas uma manobra diplomática, mas um realinhamento mais amplo que reflete a evolução da política externa do Brasil sob o governo Lula e o PT. O posicionamento controverso do Brasil após a invasão russa do país revelou um movimento estratégico em direção ao Sul Global e com foco no desenvolvimento econômico. 

Este é um dos argumentos centrais apresentados pelo artigo acadêmico Explaining Brazil’s Stance on the Ukraine War, escrito por Krause e publicado pelo journal Bulletin of Latin American Research

O estudo diz que a postura do Brasil deve ser entendida no contexto das tensões geopolíticas mais amplas e vai além do equilíbrio geopolítico, sendo baseada em uma visão voltada para estimular o desenvolvimento econômico por meio da cooperação. Krause explica que a relutância do Brasil em criticar a Rússia é evidência da convicção do governo brasileiro de que uma aliança mais forte com o Sul Global pode resultar em ganhos econômicos. 

Tradicionalmente, o Brasil sempre manteve uma política externa pragmática e de busca pela paz, reminiscentes de seu posicionamento durante a Guerra Fria. No entanto, Krause argumenta que essa “nova política externa” do Brasil no caso da Ucrânia está se afastando de seu compromisso histórico com o não-alinhamento e o pragmatismo, revelando uma inclinação crescente para desafiar as normas internacionais liberais.

No centro dessa escolha está um alinhamento impulsionado por imperativos econômicos. A Rússia continua sendo um fornecedor crucial de fertilizantes essenciais para o setor agrícola brasileiro. Essa dependência econômica influenciou tanto Lula quanto seu antecessor, Jair Bolsonaro, a se absterem de criticar a Rússia. Além dos laços econômicos, a visão mais ampla do Brasil envolve o fortalecimento da cooperação Sul-Sul, principalmente através de sua associação com os Brics, que visa criar uma alternativa aos modelos econômicos dominados pelo Ocidente.

Apesar de Lula ter se posicionado como um potencial mediador no conflito ucraniano, seus comentários sobre o conflito geraram controvérsias. Ele sugeriu que a Ucrânia compartilha parte da culpa pela guerra e propôs que a Ucrânia poderia ter que ceder a Crimeia à Rússia. Essas declarações, juntamente com a recusa do Brasil em aderir estritamente às narrativas ocidentais, sublinham uma tentativa deliberada de traçar um caminho distinto na política externa.

Além disso, o artigo ressalta que o governo Lula, notadamente através das ações de seu principal assessor de política externa, Celso Amorim, tem se envolvido ativamente tanto com a Rússia quanto com a Ucrânia, embora com reações mistas. Enquanto a visita de Amorim a Moscou teve como objetivo negociações de paz, seu subsequente ceticismo em relação aos achados da ONU sobre crimes de guerra russos na Ucrânia gerou críticas.

A mudança na política externa do Brasil também reflete ressentimentos mais profundos com a ordem internacional dominada pelo Ocidente. Krause destaca várias instâncias que alimentaram esse sentimento, incluindo a repercussão de um acordo de combustível nuclear com o Irã, revelações de espionagem dos EUA no Brasil e a turbulência doméstica da Operação Lava Jato. Esses eventos reforçaram uma percepção dentro da esquerda brasileira de que a interferência ocidental tem prejudicado o desenvolvimento e a soberania do Brasil.

O papel da China como principal parceiro comercial do Brasil e investidor significativo cimentou ainda mais a mudança do Brasil em direção ao Sul Global. O Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos Brics, representa um movimento crucial para criar mecanismos financeiros independentes das instituições ocidentais como o FMI e o Banco Mundial. Essa parceria é vista como essencial para o desenvolvimento econômico do Brasil, proporcionando uma alternativa ao que é percebido como apoio financeiro restritivo e condescendente do Ocidente.

Embora o alinhamento do Brasil com o Sul Global ofereça potenciais benefícios econômicos, também acarreta riscos significativos, segundo o estudo. Ao não condenar inequivocamente as ações da Rússia, o Brasil corre o risco de alienar aliados ocidentais e legitimar regimes autocráticos. Krause aponta que essa abordagem pode encorajar a Rússia e a China em suas ambições regionais, potencialmente levando a uma maior instabilidade geopolítica.

Por mais que o argumento do governo seja divergente dessa avaliação, à medida que o Brasil continua a navegar neste complexo cenário geopolítico, suas ações terão implicações de longo alcance para sua posição global e desenvolvimento interno.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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