31 maio 2024

Voo alto

Documento assinado pelos dois países revela uma postura diplomática distante de uma política externa de Estado, pois os coloca claramente ao lado da Rússia. Defesa do interesse nacional aconselha a independência e a equidistância de blocos e alinhamentos automáticos

Os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da China, Xi Jinping, durante evento do Brics na África do Sul (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Na semana passada, Brasil e China assinaram comunicado em que tornaram público entendimentos sobre uma resolução política para a crise na Ucrânia. O documento é resultado de uma política externa com forte influência ideológica e partidária, não de uma política de Estado, visto que claramente os dois países se colocam do lado da Rússia.

Os itens principais do anúncio tratam da desescalada da crise baseada em três princípios: não expansão do campo de batalha, não escalada dos combates e não inflamação da situação por qualquer parte.

Nesse contexto, o comunicado rejeita o uso de armas de destruição em massa, em particular armas nucleares, químicas e biológicas, defende que todos os esforços possíveis devem ser feitos para prevenir a proliferação nuclear e evitar uma crise nuclear.

Levando em conta o que ocorre em Gaza, nos ataques de Israel ao Hamas, e fazendo uma concessão política, em crítica indireta à Rússia, os dois países pedem que ataques a civis ou instalações civis devem ser evitados, e a população civil, incluindo mulheres, crianças e prisioneiros de guerra, deve ser protegida. As duas partes apoiam a troca de prisioneiros de guerra entre os países envolvidos no conflito.

Brasil e China apoiam uma conferência internacional de paz realizada em um momento apropriado, desde que seja reconhecida tanto pela Rússia quanto pela Ucrânia, com participação igualitária de todas as partes relevantes’

Em referência indireta à conferência na Suíça para discutir a crise na Ucrânia, Brasil e China apoiam uma conferência internacional de paz realizada em um momento apropriado, desde que seja reconhecida tanto pela Rússia quanto pela Ucrânia, com participação igualitária de todas as partes relevantes, além de uma discussão justa de todos os planos de paz. O ministro do exterior russo, Sergei Lavrov, pediu publicamente que os países do Sul Global não compareçam à reunião em vista do não convite a Moscou.

As duas partes, finalmente, convidam os membros da comunidade internacional a apoiar e endossar esses entendimentos comuns e a desempenhar, conjuntamente, um papel construtivo em favor da desescalada da situação e da promoção de conversações de paz.

Na ausência de uma ideia clara do Brasil sobre a parceria estratégica com a China, cabe perguntar se é oportuno desviar a atenção da agenda bilateral prioritária para uma questão que os dois países terão dificuldade em influenciar por razões diferentes. A China, por já apoiar econômica e militarmente a Rússia, evita manifestação direta de apoio, e o Brasil porque não tem excedente de poder. 

‘Ausência do chanceler Mauro Vieira compromete o protagonismo do Itamaraty’

O comunicado, certamente inspirado pela China e apoiado pelo Brasil, foi divulgado durante a visita do assessor internacional do presidente Lula a Pequim, a convite do governo chinês. Dada a importância da matéria e o engajamento em nome do Brasil, fica a pergunta sobre as razões da ausência do chanceler Mauro Vieira, comprometendo o protagonismo do Itamaraty.

O único ponto do comunicado relevante para os interesses, não ideológicos, mas pragmáticos do Brasil é a afirmação de que a divisão do mundo em grupos políticos ou econômicos isolados deveria ser evitada. 

As duas partes pedem novos esforços para reforçar a cooperação internacional em energia, moeda, finanças, comércio, segurança alimentar e segurança de infraestrutura crítica, incluindo oleodutos e gasodutos, cabos óticos submarinos, instalações elétricas e de energia, bem como redes de fibra ótica, a fim de proteger a estabilidade das cadeias industriais e de suprimentos globais. 

Ao Brasil não interessa a divisão do mundo (democracias x países autoritários ou Ocidente x Anti-Ocidente), visto que a defesa de seus próprios interesses aconselha a independência e a equidistância de blocos e alinhamentos automáticos.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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