O país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos
Últimos 30 anos revelam padrão de promessas, equívocos e poucos avanços na economia, na política e nas relações internacionais. Para embaixador, avaliar com realismo o lugar do Brasil no mundo é condição necessária para um política externa destinada à defesa do interesse nacional e não à busca de protagonismo internacional
Últimos 30 anos revelam padrão de promessas, equívocos e poucos avanços na economia, na política e nas relações internacionais. Para embaixador, avaliar com realismo o lugar do Brasil no mundo é condição necessária para um política externa destinada à defesa do interesse nacional e não à busca de protagonismo internacional
Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*
Nos últimos 30 anos o Brasil tem sido o país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos. No início do século XXI soubemos aproveitar uma grande oportunidade. Vivemos o virtuoso reformismo econômico e social assegurado pela “transição civilizada” FHC-Lula. FHC assegurou estabilidade política e modernização da economia, seguidas pela continuidade da política econômica e pelo aprofundamento de políticas sociais exitosas de Lula.
O Plano Real trouxe duradouros benefícios ao país: arquivou quatro décadas de inflação crônica; demonstrou que o combate à inflação beneficiava os mais pobres e não era instrumento de manipulação política das elites contra o povo; definiu um tripé macroeconômico como pilar de referência – lei de responsabilidade fiscal, metas de inflação e câmbio flexível; privatizou setores e empresas que tiveram grande expansão graças ao aporte do capital privado (telecomunicações, Embraer e Vale do Rio Doce); criação do Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional), que adaptou os bancos a uma economia de baixa inflação.
As políticas sociais, marcadas até então pelo assistencialismo, ganharam focalização e eficiência: criação do Programa Nacional de Direitos Humanos; lançamento do Programa Nacional de Ações Afirmativas; programa Bolsa Escola; diversos programas setoriais, como Vale Gás, Vale Transporte; universalização do acesso ao ensino fundamental por parte da população de 7 a 14 anos.
O governo Lula teve o mérito de dar continuidade ao exitoso reformismo econômico de FHC e de ampliar, aprofundar e inovar políticas sociais: baixa taxa de inflação e crescimento médio do PIB de 4% entre 2003 e 2010 , impulsionado pelo boom das commodities; aumentos recorrentes do salário mínimo real, com efeitos redistributivos mas também inflacionários (escalada do déficit da Previdência Social); ampliação substancial dos programas de transferência de renda ( o Bolsa Família passou a beneficiar em torno de 12 milhões de famílias, em contraste com cerca de 4 milhões atingidas pelo Bolsa Escola); o Brasil saiu do Mapa da Fome – indicador de fome e insegurança alimentar utilizado pela ONU – com a retirada de 43 milhões de pessoas da linha de pobreza; criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR em 2003, transformada em ministério cinco anos depois; incorporação da população LGBTQIA+ nas políticas públicas; inclusão no currículo oficial da temática “História e Cultura Afro-brasileira”; criação do Programa Mais Médicos que, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde(OPAS), chegou a contar com mais de 11 mil médicos cubanos, com atuação cerca de 2800 cidades e em 34 distritos de saúde indígena.
Os dados acima serviram de base ao reconhecimento internacional dos avanços ocorridos no país. Esses foram vistos como um período de reformas econômicas, consolidação da democracia e crescente credibilidade internacional (FHC), seguido por uma fase de mudanças sociais efetivas (redução da pobreza e inclusão social), crescimento econômico elevado e projeção internacional (Lula).
O desvirtuamento do bom caminho
Esse ciclo virtuoso começou a se desvirtuar na metade do segundo mandato de Lula e se rompeu definitivamente com Dilma. Foi a primeira grande oportunidade perdida dos últimos trinta anos. Mantega estendeu, para muito além do razoável, a política contracíclica, destinada a enfrentar, no curto prazo, a crise econômica internacional de 2008. O consequente descontrole das contas públicas e a turbulenta relação com o Congresso terminaram por cobrar seu preço político ( impeachment) e econômico (violenta queda de 7% do PIB no biênio 2015-2016).
As energias desperdiçadas e os erros esquecidos – A Petrobras endividada
Além das oportunidades perdidas, o Brasil das últimas três décadas foi também o país das energias desperdiçadas e dos erros esquecidos. O setor de petróleo e gás é revelador dessa trajetória.
Em 1979, ano da Revolução Iraniana e do segundo choque do petróleo, o Brasil produzia apenas 15% da demanda doméstica de petróleo. Mas elevados investimentos no setor na década de 1970 se estenderam até os anos 1990, e fizeram com que em 2006 o país alcançasse a autossuficiência em petróleo. Para isso, contribuíram de forma significativa as reformas realizadas no governo FHC: o fim do monopólio da Petrobras; a abertura do setor; e a internacionalização da empresa, com o lançamento de ações na Bolsa de Valores de Nova York.
Essa modernização ocorreu tendo como marco regulatório o modelo exploratório de concessão. Entretanto, em 2006, com o anúncio da descoberta das reservas extraordinárias do pré-sal, o governo Lula passou a adotar o modelo de partilha para os campos do pré-sal, tendo mantido o modelo de concessão para as demais áreas. No regime de concessão, a empresa concessionária é dona de todo o petróleo que produz, enquanto na partilha o dono é o Estado.
O primeiro problema da mudança do modelo no pré-sal foi a inércia. Entre o anúncio da descoberta do pré-sal e o primeiro leilão, no campo de Libra, em 2013, se passaram longos sete anos. O prejuízo para o país foi muito elevado, não só pela perda de receitas em período de elevadas cotações do petróleo, mas, sobretudo, porque as fontes alternativas cresciam e o horizonte de vida do petróleo se encurtava. Além disso, no novo marco regulatório, a Petrobras assumiu a condição de única operadora do pré-sal, o que desestimulou a participação de empresas estrangeiras nos leilões e obrigou a Petrobras a explorar campos com menor rentabilidade.
Dois outros fatores contribuíram para agravar os vultosos prejuízos da Petrobras: o congelamento de preços dos combustíveis, destinado a conter a inflação; e desastrosos projetos superdimensionados, como, por exemplo, a construção da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, e do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj.
As perdas resultantes da política de congelamento dos preços da gasolina agigantaram a dívida da Petrobras, que atingiu seu pico de R$ 507 bilhões no terceiro trimestre de 2015. A título comparativo, a empresa registrou oficialmente perdas resultantes de corrupção no valor de R$ 6,19 bilhões no período 2004-2012, .
O Comperj, apesar de gastos elevados, praticamente nada avançou e o desperdício com a refinaria Abreu e Lima foi exponencial. Sua construção foi orçada em US$ 2,3 bilhões em 2005. Quatro anos depois esse valor se elevou para US$ 13 bilhões, e em 2015 o custo se aproximava de US$ 20 bilhões, quando as obras foram interrompidas, tendo sido concluída apenas metade da refinaria.
O resgate de projetos como a refinaria Abreu e Lima e o Comperj, além do anúncio de novos investimentos na fracassada indústria naval – sem a necessária autocrítica dos erros passados e sem considerar a governança como peça central da política industrial – foi receita para o insucesso.
Nações asiáticas – Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong – são a referência histórica exitosa de políticas industriais. Mas o renascimento da política industrial é hoje fenômeno global, como revela Dani Rodrik no mapeamento do “surto” de iniciativas do gênero, inclusive nos países desenvolvidos, a partir de 2017.
No Brasil isso gerou a ideia de que poderíamos reindustrializar o país por meio da importação do modelo asiático. A esse respeito, é necessário ter presente as especificidades daquelas experiências exitosas, para evitar a ilusão de que os acertos deles podem ser por nós replicados. O êxito asiático resultou da combinação de elevada taxa de poupança (e consequente baixa taxa de juros), escolaridade de alto nível e incentivos fiscais que começam e terminam. Ou seja, tudo que não temos aqui. Isso não invalida de forma alguma os esforços nessa direção. Tivemos êxitos localizados de política industrial no passado distante – Embraer/ CTA – Centro Tecnológico da Aeronáutica, agroindústria/ Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, Petrobras/Cenpes – Centro de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação e fracassos recentes, sendo, por isso mesmo, indispensável separar o joio do trigo.
O plano de reindustrialização do país recentemente lançado – A Nova Indústria Brasil (NIB) – retoma medidas reprovadas no passado e se assemelha ao Programa de Sustentação do Investimento (PSI), de 2008. Esse consistiu no aporte de R$ 400 bilhões do Tesouro ao BNDES, direcionados às “campeãs nacionais”, com taxas de juros inferiores às vigentes no mercado. Foi a crônica de um desastre previsível.
Apesar desses equívocos, a política industrial do passado está sendo reeditada, sem autocrítica e com repetição de alguns setores beneficiados, numa clara demonstração de que, além das oportunidades perdidas, o Brasil é também o país dos erros esquecidos.
O anunciado governo da união e da reconstrução perde seu rumo
Com a vitória da extrema-direita bolsonarista em 2018, o país despertou da ilusão generalizada de ter instituições sólidas e de ser uma democracia consolidada. Ao contrário, essa estava ameaçada como em 1964, mas com uma engenharia de desconstrução política distinta. Dispensava os tanques na rua, os militares no primeiro plano e, por meio da falência dos órgãos vitais das instituições, planejava a morte da democracia. Mas Bolsonaro não foi reeleito, a democracia se salvou, e a vitória de Lula se deu de forma distinta dos pleitos anteriores. Repetia o apoio tradicional das regiões mais pobres (Nordeste e Norte), mas resultava da combinação de dois ingredientes inéditos: o anti- bolsonarismo resultante da polarização/calcificação política; e o apoio de variadas correntes liberais democratas, temerosas da morte da democracia.
Esses dois ingredientes na vitória de Lula criaram a oportunidade de uma união nacional, destinada a superar a divisão entre extrema-direita bolsonarista versus esquerda lulista. Essa união nacional resultaria da aproximação entre a esquerda intervencionista e o centro liberal democrata. Esse cenário, obviamente difícil, parecia interessar não só ao centro – órfão político com o virtual desaparecimento do PSDB – mas também à esquerda, que precisava ampliar seus apoios, uma vez que a vitória eleitoral de Lula sobre Bolsonaro foi por margem inferior a 2%.
Mas esse cenário virtuoso de união nacional foi jogado fora. Logo após a eleição, Lula anunciou seu projeto de união e reconstrução do país, mas seguiu caminhos distantes de tal propósito. Em lugar de se aproximar do centro – decisivo na sua apertada vitória sobre Bolsonaro – Lula preferiu apostar na polarização.
O argumento implícito é que a polarização favorece os dois extremos, porque cria barreiras à entrada de outros líderes e grupos políticos. Ou seja, a polarização beneficiaria o PT, porque repetiria o confronto lulismo versus bolsonarismo, resiliente mesmo com Bolsonaro inelegível. Nessa ótica equivocada, qualquer gesto em direção ao centro deveria ser evitado, pois seria visto como jogo de soma zero – o ganho do centro equivaleria à perda da esquerda.
Esse raciocínio esquece que o PT precisa ampliar sua base de apoio e a atual política não agrega o eleitorado liberal democrata de centro, sem o qual Lula não teria vencido Bolsonaro em 2018. Assim, o projeto anunciado por Lula candidato – um governo de união e reconstrução nacional – fica sepultado e, mais uma vez, estamos diante do país das oportunidades perdidas.
A política externa virtuosa de Lula I e II e os descaminhos de Lula III
A política externa é outro exemplo de oportunidades perdidas. A atuação internacional de Bolsonaro foi uma desastrosa sucessão de graves equívocos que aproximaram o país da condição de pária no mundo. Seu propósito declarado era desconstruir princípios e paradigmas que orientavam a diplomacia brasileira.
Nesse contexto de um país sem rumo, a eleição de Lula provocou profundo alívio e grandes esperanças no mundo, e assumiu sob signo “o Brasil voltou”. Apesar desse ambiente de calorosa receptividade – justificado também pelo capital de credibilidade internacional construído ao longo dos dois mandatos anteriores de Lula -, a política externa do atual governo vem se afastando de paradigmas que deram à política externa brasileira (PEB) reconhecimento e projeção – ampla influência regional; distanciamento em relação às duas superpotências (EUA e China); prioridade à defesa do interesse nacional e não à busca de protagonismo internacional; papel destacado como potência ambiental; e defesa da democracia, dos direitos humanos, da autodeterminação e da não-interferência.
O Brasil é uma potência regional com interesses globais. Temos condições de influenciar os rumos de nossa região, mas não dispomos de capacidade militar, de poder político, nem de peso econômico que nos habilitem a mudar os grandes acontecimentos globais. Avaliar com realismo o lugar do Brasil no mundo é condição necessária para um política externa destinada à defesa do interesse nacional e não à busca de protagonismo internacional.
O atual governo está falhando nessa tarefa. As declarações de Lula sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia chegaram ao ponto de igualar agressor e agredido, ao mesmo tempo que o governo se silenciava, de forma contrária ao direito internacional, diante da agressão russa ao território ucraniano. Com hesitação, o presidente tentou corrigir esses erros, mas sempre preservando a aspiração de influir num conflito que vai muito além de nossas forças. Repetiu esse erro de avaliação na guerra Hamas-Israel, ao buscar repatriar os brasileiros na Faixa de Gaza recorrendo ao presidente Raizi do Irã, em óbvio erro tático.
A barbárie do Hamas, ao invadir kibutz em território israelense e executar com requintes de crueldade 1.200 cidadãos, mereceu ampla condenação internacional. A barbárie israelense, mais devastadora ainda, com a tragédia humanitária do saldo de mais de 20 mil palestinos mortos – equivalente a cerca de 1% da população da Faixa de Gaza – e 70% da infraestrutura destruída, mereceu condenação mais veemente ainda.
A diplomacia brasileira na presidência do Conselho de Segurança da ONU agiu de forma equilibrada e coerente com a trajetória de nossa política externa. Entretanto, uma vez mais, a retórica presidencial, ao reconhecer os bárbaros crimes de guerra israelenses mas sem condenar com rigor as atrocidades cometidas pelo Hamas, desvirtua os pilares da PEB.
Na nossa região, onde temos um histórico de equilíbrio construtivo no convívio com mais de dez vizinhos, o saldo do atual governo é muito negativo, por apoiar de forma recorrente os regimes autoritários de Maduro e Daniel Ortega, e ao criticar, com arrogância, Daniel Boric, o representante de uma esquerda moderna na região. Maduro assumiu compromisso de realizar eleições livres, mas o Tribunal Supremo de Justiça, por ele controlado, impediu os dois mais fortes candidatos da oposição de participarem do pleito. A diplomacia brasileira, que se manteve silente em mais esse episódio, deveria afastar-se da excessiva e recorrente condescendência com o regime autoritário venezuelano.
No plano global, nosso alinhamento quase automático com posturas e aspirações da China no âmbito do Brics ampliado, composto em sua maioria por regimes antidemocráticos, nos distancia dos países que defendem a democracia liberal. Essa postura reflete um antiamericanismo pouco compatível com o equilíbrio da PEB e com a defesa do interesse nacional.
Em síntese, os últimos 30 anos de nossa história revelam, na economia, na política e nas relações internacionais, o padrão de uma nação com enormes potencialidades. Mas, ao mesmo tempo, o país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos.
*Sergio Abreu e Lima Florêncio é diplomata, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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