10 outubro 2024

A ambiguidade brasileira entre ser do Ocidente ou do Sul Global

A identidade brasileira se manifesta na relação do país com o Ocidente e o Sul Global de maneira complexa e multifacetada, diz. O Brasil se vê como parte do Ocidente, mas também busca seu espaço no Sul Global, tentando conciliar suas raízes históricas e sua posição no mundo atual

Ilustração criada por inteligência artificial representando o dilema de identidade do Brasil entre ser parte do Ocidente e do Sul Global (Foto: ChatGPT)

Em um contexto internacional marcado por uma crescente polarização política e pela fragmentação nas relações internacionais, com pelo menos dois grandes conflitos na Europa e no Oriente Médio, a identidade (inter)nacional de um país é fundamental para compreender sua política externa. No caso do Brasil, essa identificação tem sido marcada por uma tensão entre ser parte do Ocidente ou do chamado Sul Global. Ao longo da história se criaram camadas identitárias de origem distinta que se sobrepuseram no imaginário nacional e que se refletiram na política externa, gerando uma ambiguidade estratégica.

Este é o argumento central do artigo acadêmico Brasil entre o Ocidente e o Sul Global: ambiguidade estratégica e grandes, escrito por mim e pelo professor Feliciano de Sá Guimarães. Ele faz parte do livro Europa e América Latina: A Convergência Necessária, recém-lançado pela Edusp e coordenado pelo intelectual português Álvaro Vasconcelos durante sua atuação na Cátedra José Bonifácio da USP. 

O texto analisa a ambiguidade estratégica do Brasil como potência global, explorando as tensões entre a identidade nacional e a busca por um posicionamento no contexto internacional. O artigo destaca a influência do Ocidente na construção da identidade brasileira e como o país tenta conciliar suas relações com os Estados Unidos e a China, por exemplo. 

‘A ambivalência do Brasil em relação ao Sul Global e ao Ocidente se manifesta em diversas áreas da política externa, como na atuação do país na Guerra da Ucrânia, na guerra entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza’

A análise indica que a ambivalência do Brasil em relação ao Sul Global, ao Ocidente e seu próprio papel no mundo se manifesta em diversas áreas da política externa, como na atuação do país na Guerra da Ucrânia, na guerra entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza e nas relações com a América Latina, a África, e outros países asiáticos.

A identidade brasileira se manifesta na relação do país com o Ocidente e o Sul Global de maneira complexa e multifacetada, diz. O Brasil se vê como parte do Ocidente, mas também busca seu espaço no Sul Global, tentando conciliar suas raízes históricas e sua posição no mundo atual. Essa ambiguidade se reflete na política externa do país, que oscila entre o alinhamento com o Ocidente e a busca por maior autonomia e protagonismo no cenário internacional, mais alinhado ao Sul Global.

Por um lado, explica o artigo, a identidade brasileira como ocidental tem raízes históricas na formação do país como uma extensão da civilização europeia na América Latina. Desde a independência, o Brasil se viu como parte do Ocidente, adotando modelos políticos e econômicos europeus. Apesar dessa identificação com o Ocidente, o Brasil também buscou afirmar sua autonomia e se aproximar dos países do hoje chamado Sul Global, principalmente durante o período da Guerra Fria. E a política externa brasileira reflete essa ambiguidade identitária.

‘Essa falta de definição clara de sua identidade e de sua posição no mundo impede o Brasil de alcançar todo seu potencial e gera frustração entre seus parceiros internacionais’

O estudo explica ainda que essa ambiguidade da identidade brasileira gera uma percepção externa de que o Brasil é um “país ambicioso sem plano”. Essa falta de definição clara de sua identidade e de sua posição no mundo impede o Brasil de alcançar todo seu potencial e gera frustração entre seus parceiros internacionais. A falta de uma posição definida em relação ao Ocidente e ao Sul Global gera a percepção de que o Brasil age de forma errática e oportunista, buscando vantagens em ambos os lados sem um compromisso claro com nenhum deles.

O Brasil é visto como um país que busca projeção internacional e um lugar de destaque no cenário global, mas sem articular um plano consistente que demonstre seus verdadeiros interesses e objetivos de longo prazo. A ambiguidade da identidade brasileira e a falta de um projeto claro para o país no cenário internacional também impedem que o Brasil seja reconhecido como uma potência global de fato, apesar de seu potencial econômico e político.

Além desse capítulo sobre a ambiguidade da identidade nacional, a obra Europa e América Latina: A Convergência Necessária é uma coleção de artigos que exploram o papel da América Latina e da Europa no cenário global, particularmente no contexto da política internacional, da integração regional e da governança global. 

‘A convergência entre a América Latina e a Europa é importante a fim de impulsionar o multilateralismo e uma governança global mais equilibrada’

O texto analisa as relações entre as duas regiões, focando em questões como o comércio internacional, as mudanças climáticas, a democracia, a segurança e o papel do Sul Global na ordem internacional. O argumento central é o da importância da convergência entre as duas regiões a fim de impulsionar o multilateralismo e uma governança global mais equilibrada.

Os artigos reunidos no livro alegam que o mundo atual é marcado pela polarização e fragmentação nas relações internacionais, desafiando a ordem global estabelecida após a Segunda Guerra Mundial. A globalização econômica, impulsionada pelo neoliberalismo, intensificou as desigualdades globais e dentro dos próprios países (tanto do Norte quanto do Sul), alimentando o descontentamento social e o crescimento da extrema-direita.

Neste contexto, o chamado Sul Global, composto por países em desenvolvimento, busca um papel mais proeminente na governança global, desafiando a hegemonia tradicional do Norte Global (países desenvolvidos, principalmente ocidentais). Diante dos desafios globais (como as mudanças climáticas, desigualdades e conflitos), a cooperação entre o Sul Global e o Norte Global, especialmente com a União Europeia, é crucial para construir um futuro mais justo e sustentável.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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