24 abril 2023

Por que países democráticos por todo o mundo não estão apoiando a Ucrânia –e alguns estão se aproximando da Rússia?

A guerra na Ucrânia mostrou que o não-alinhamento continua a ser uma escolha popular, apesar dos apelos pelo apoio a outra democracia sob ataque. Essa política tem sido um elemento importante da identidade política de países como a Índia, o Brasil e a África do Sul. Para economista, incentivos econômicos e políticos específicos que são influentes quando os países decidem não condenar a Rússia

A guerra na Ucrânia mostrou que o não-alinhamento continua a ser uma escolha popular, apesar dos apelos pelo apoio a outra democracia sob ataque. Essa política tem sido um elemento importante da identidade política de países como a Índia, o Brasil e a África do Sul. Para economista, incentivos econômicos e políticos específicos que são influentes quando os países decidem não condenar a Rússia

Os ministros das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, e da Rússia, Sergei Lavrov, durante visita do russo a Brasília (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil)

Por Jose Caballero*

Após mais de um ano da guerra na Ucrânia, os esforços para construir um consenso global contra a Rússia parecem ter perdido força, com muitos países optando pela neutralidade.

O número de países que condenam a Rússia diminuiu, segundo algumas fontes. Botswana se aproximou da Rússia, deixando sua postura pró-Ucrânia original, a África do Sul está passando de neutra para inclinada para a Rússia e a Colômbia, de condenar a Rússia para uma postura neutra. Ao mesmo tempo, um grande número de países relutou em apoiar a Ucrânia.

Na África, por exemplo, apesar do apelo da União Africana a Moscou por um “cessar-fogo imediato”, a maioria dos países permanece neutra. Alguns observadores argumentam que isso é resultado de uma tradição de regimes de esquerda que remonta ao período da Guerra Fria. Outros indicam que a atual relutância dos países africanos tem origem na história da intervenção ocidental, ora encoberta, ora aberta, em seus assuntos internos.

A relutância em condenar a Rússia, porém, vai além da África. Em fevereiro de 2023, a maioria dos países latino-americanos apoiou uma resolução da ONU para pedir uma retirada russa imediata e incondicional. E, no entanto, apesar do apoio do Brasil a várias resoluções da ONU a favor da Ucrânia, o país não condenou a Rússia abertamente. Dentro da ONU, a posição da Bolívia, Cuba, El Salvador e Venezuela permitiu que a Rússia escapasse das sanções ocidentais. Além disso, Brasil, Argentina e Chile rejeitaram pedidos de envio de material militar para a Ucrânia, e o México questionou a decisão da Alemanha de fornecer tanques à Ucrânia.

As mesmas divisões são evidentes na Ásia. Enquanto o Japão e a Coreia do Sul denunciaram abertamente a Rússia, a Associação das Nações do Sudeste Asiático não o fez coletivamente. A China aborda o conflito através de um ato de equilíbrio por meio de sua parceria estratégica com a Rússia e sua crescente influência na ONU. Durante seu período como membro do Conselho de Segurança da ONU, a Índia se absteve nas votações relacionadas ao conflito.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/daniel-buarque-brasil-voltou-para-cima-do-muro-mas-corre-risco-de-ser-visto-como-problema-por-todos-os-lados-da-tensao-global/

A política da neutralidade

Essa posição cautelosa e neutra foi influenciada pelo movimento de não-alinhamento da Guerra Fria, que foi percebido como uma forma de os países em desenvolvimento combaterem o conflito “em seus termos” e assim adquirirem um certo grau de autonomia em política externa, fora da esfera de influência da União Soviética e do Ocidente. Estudos de sanções da UE argumentaram que a relutância de outros países em apoiar a posição da UE pode estar relacionada tanto ao desejo de independência da política externa quanto à relutância em antagonizar um vizinho.

O não-alinhamento permite que os países evitem se envolver nas crescentes tensões geopolíticas entre o Ocidente e a Rússia. Talvez seja por isso que muitos países democráticos mantêm uma postura de neutralidade, preferindo, como disse o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, “conversar com os dois lados”.

Existem, no entanto, incentivos econômicos e políticos específicos que são influentes quando os países decidem não condenar a Rússia.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/rubens-barbosa-a-arte-de-ficar-calado/

Brasil

Desde os estágios iniciais do conflito na Ucrânia, o Brasil manteve uma postura pragmática, mas ambivalente. Esta posição se conecta às necessidades agrícolas e energéticas do Brasil. Como um dos maiores produtores e exportadores agrícolas do mundo, o Brasil requer uma alta taxa de uso de fertilizantes. Em 2021, o valor das importações da Rússia foi de US$ 5,58 bilhões, dos quais 64% foram de fertilizantes. As importações de fertilizantes da Rússia representam 23% do total de 40 milhões de toneladas importadas.

Em fevereiro de 2023, foi anunciado que a empresa russa de gás Gazprom investirá no setor de energia do Brasil como parte da expansão das relações energéticas entre os dois países. Isso poderia levar a uma estreita colaboração na produção e processamento de petróleo e gás e no desenvolvimento da energia nuclear. Tal colaboração pode beneficiar o setor de petróleo do Brasil, que deve ficar entre os maiores exportadores do mundo. Em março de 2023, as exportações russas de diesel para o Brasil atingiram novos recordes, ao mesmo tempo em que houve um embargo total da UE aos derivados de petróleo russos. Um nível mais alto de oferta de diesel pode aliviar qualquer possível escassez que possa afetar o setor agrícola do Brasil.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/jacob-shively-lula-enfrentara-pressao-para-escolher-lado-em-disputas-internacionais/

Índia

Os observadores apontam que na era pós-Guerra Fria, a Rússia e a Índia continuam a compartilhar pontos de vista estratégicos e políticos semelhantes. No início dos anos 2000, no contexto de sua parceria estratégica, o propósito da Rússia era construir um sistema global multipolar que atraísse a cautela da Índia em relação aos Estados Unidos como parceiro. A Rússia também forneceu apoio à Índia para seu programa de armas nucleares e seus esforços para se tornar um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. A Rússia continua a ser um ator-chave no comércio de armas da Índia, fornecendo 65% das importações de armas da Índia entre 1992 e 2021. Desde o início da guerra, tornou-se um importante fornecedor de petróleo a preços baixos. Isso significou um aumento nas compras de cerca de 50 mil barris por dia em 2021 para cerca de 1 milhão de barris por dia em junho de 2022.

África do Sul

Na véspera do aniversário da guerra, a África do Sul realizou um exercício naval conjunto com a Rússia e a China. Para a África do Sul, os benefícios do exercício estão relacionados à segurança por meio da capacitação de sua marinha subfinanciada e sobrecarregada. De forma mais ampla, existem incentivos comerciais para a postura neutra da África do Sul. A Rússia é o maior exportador de armas para o continente africano. Também fornece energia nuclear e, mais importante, 30% dos suprimentos de grãos do continente, como o trigo, com 70% das exportações totais da Rússia para o continente concentradas em quatro países, incluindo a África do Sul.

Em janeiro de 2023, a Rússia era um dos maiores fornecedores de fertilizantes para a África do Sul, um elemento crítico para o crescimento de pastagens e colheitas. Além disso, entre as principais importações da Rússia estão briquetes de carvão usados como combustível em diversas indústrias, incluindo processamento de alimentos. Considerando o nível de insegurança alimentar do país, ambas as importações são fundamentais para sua estabilidade sociopolítica e econômica.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fausto-godoy-lula-a-russia-a-ucrania-e-a-otan/

A guerra na Ucrânia mostrou que o não-alinhamento continua a ser uma escolha popular, apesar dos apelos pelo apoio a outra democracia sob ataque. Essa política tem sido um elemento importante da identidade política de países como a Índia. Em outros casos, como o Brasil, apesar das aparentes mudanças sob o presidente Jair Bolsonaro, o não intervencionismo continua sendo um elemento fundamental de sua tradição política.

No entanto, é provável que a neutralidade se torne um “ato de equilíbrio complicado” à medida que os interesses conflitantes se tornam mais agudos, particularmente no contexto da provisão ocidental de investimento direto além de desenvolvimento e ajuda humanitária para muitos dos Estados não alinhados.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/o-conflito-russia-ucrania-trara-o-renascimento-dos-nao-alinhados/

*Jose Caballero é economista sênior no Centro de Competitividade Global IMD, International Institute for Management Development (IMD)


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter