O Sul Global está forjando uma nova política externa diante da guerra na Ucrânia e de tensões entre China e EUA: o não-alinhamento ativo
Nova abordagem aproveita momento em que nações emergentes estão mais fortes no cenário internacional e se caracteriza pela sua recusa a tomar partido em conflitos entre as grandes potências e concentração em seus próprios interesses. Para embaixador, o movimento reflete um desencanto generalizado no Sul Global com o que é conhecido como a “Ordem Internacional Liberal” existente desde a Segunda Guerra Mundial
Nova abordagem aproveita momento em que nações emergentes estão mais fortes no cenário internacional e se caracteriza pela sua recusa a tomar partido em conflitos entre as grandes potências e concentração em seus próprios interesses. Para embaixador, o movimento reflete um desencanto generalizado no Sul Global com o que é conhecido como a “Ordem Internacional Liberal” existente desde a Segunda Guerra Mundial
Por Jorge Heine*
O que a guerra da Ucrânia tem a ver com o Brasil? De imediato, talvez não muito.
No entanto, em seus primeiros seis meses no cargo, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva – agora em seu terceiro mandato não-consecutivo – fez muito esforço tentando trazer a paz ao conflito no Leste Europeu. Isso incluiu conversas com o presidente dos EUA, Joe Biden, em Washington, o presidente chinês, Xi Jinping, em Pequim, e uma teleconferência com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy. Também viu a “diplomacia de ponte aérea” do principal assessor de política externa de Lula – e ex-ministro das Relações Exteriores – Celso Amorim, que visitou o presidente russo Vladimir Putin em Moscou e recebeu seu chanceler, Sergei Lavrov, em Brasília.
Uma das razões pelas quais o Brasil está em condições de se encontrar com uma gama tão grande de partes envolvidas no conflito é porque o país fez questão de não tomar partido na guerra. Ao fazer isso, o Brasil está engajado no que meus colegas Carlos Fortin e Carlos Ominami e eu chamamos de “não-alinhamento ativo”. Com isso, entendemos uma abordagem de política externa em que os países do Sul Global – África, Ásia e América Latina – se recusam a tomar partido em conflitos entre as grandes potências e se concentram estritamente em seus próprios interesses. É uma abordagem que a revista The Economist caracterizou como equivalente a “como sobreviver a uma divisão entre superpotências”.
A diferença entre esse novo “não-alinhamento” e uma abordagem semelhante adotada pelas nações nas décadas passadas é que isso está acontecendo em uma era em que as nações em desenvolvimento estão em uma posição muito mais forte do que antes, com potências emergentes surgindo entre elas.
Por exemplo, o produto interno bruto em relação ao poder de compra dos cinco países do BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – ultrapassou o do grupo G7 de nações econômicas avançadas. Esse crescente poder econômico dá às nações ativas não-alinhadas mais influência internacional, permitindo-lhes forjar novas iniciativas e formar coalizões diplomáticas de uma maneira que seria impensável antes. Será que, por exemplo, João Goulart, que foi presidente do Brasil de 1961 a 1964, teria tentado mediar na Guerra do Vietnã, da mesma forma que Lula está fazendo com a Ucrânia? Acredito que fazer a pergunta é respondê-la.
Nem neutro nem desinteressado
O crescimento do não-alinhamento ativo foi alimentado pelo aumento da competição e pelo que vejo como uma segunda Guerra Fria em desenvolvimento entre os Estados Unidos e a China. Para muitos países do Sul Global, manter boas relações com Washington e Pequim tem sido crucial para o desenvolvimento econômico, bem como para os fluxos de comércio e investimento.
Simplesmente não é do interesse deles tomar partido nesse conflito crescente. Ao mesmo tempo, o não-alinhamento ativo não deve ser confundido com neutralidade – uma posição legal sob o direito internacional que acarreta certos deveres e obrigações. Ser neutro significa não tomar posição, o que não é o caso do não-alinhamento ativo.
Tampouco é o não-alinhamento ativo sobre permanecer equidistante, politicamente, das grandes potências. Em algumas questões – digamos, sobre democracia e direitos humanos – é perfeitamente possível que uma política ativa e não-alinhada assuma uma posição mais próxima dos Estados Unidos. Enquanto em outros – digamos, comércio internacional – o país pode ficar mais do lado da China.
Essa forma de não-alinhamento requer uma diplomacia altamente afinada, que examina cada questão em seus méritos e faz escolhas impregnadas de estadismo.
Abstenções em todo o mundo
No que diz respeito à guerra na Ucrânia, isso significa não apoiar nem a Rússia nem a Otan. E o Brasil não é o único país do Sul Global a assumir essa posição, embora tenha sido o primeiro a tentar intermediar um acordo de paz.
Em toda a África, Ásia e América Latina, vários países importantes se recusaram a ficar do lado da Otan. O mais proeminente entre eles tem sido a Índia, que, apesar de seus laços mais estreitos com os Estados Unidos nos últimos anos e de sua adesão ao Diálogo de Segurança Quadrilateral – ou o “Quad”, um grupo às vezes descrito como uma “Otan asiática” – com os EUA, o Japão e Austrália, recusou-se a condenar a invasão da Ucrânia pela Rússia e aumentou significativamente suas importações de petróleo russo.
O não-alinhamento da Índia provavelmente esteve na agenda durante as conversas do primeiro-ministro Narendra Modi com Biden em sua visita a Washington.
De fato, a posição da Índia, a maior democracia do mundo, mostra como a guerra na Ucrânia, longe de refletir que a principal clivagem geopolítica do mundo hoje é entre democracia e autocracia, como argumentou Biden, revela que a verdadeira divisão é entre o Sul e o Norte Global.
Algumas das democracias mais populosas do mundo, além da Índia – países como Indonésia, Paquistão, África do Sul, Brasil, México e Argentina – se recusaram a ficar do lado da Otan. Quase nenhum país da África, Ásia e América Latina apoiou as sanções diplomáticas e econômicas contra a Rússia.
Embora muitas dessas nações tenham votado para condenar a invasão russa da Ucrânia na Assembleia Geral das Nações Unidas, onde mais de 140 Estados membros o fizeram repetidamente, nenhuma delas quer transformar o que consideram uma guerra europeia em uma guerra global.
Como as ‘grandes potências’ estão reagindo
Washington aparentemente foi pego de surpresa por essa reação, tendo retratado a guerra na Ucrânia como uma escolha entre o bem e o mal – onde o futuro da “ordem internacional baseada em regras” está em jogo. Da mesma forma, durante a Guerra Fria com a União Soviética, o secretário de Estado dos EUA, John Foster Dulles, referiu-se ao não-alinhamento como “imoral”.
A Rússia viu o novo movimento não-alinhado como uma abertura para reforçar sua própria posição, com o ministro das Relações Exteriores, Lavrov, cruzando a África, a Ásia e a América Latina para reforçar a oposição de Moscou às sanções. A China, por sua vez, intensificou sua campanha para aumentar o papel internacional do yuan, argumentando que o uso do dólar americano como arma contra a Rússia apenas confirma os perigos de depender dele como a principal moeda mundial.
Mas eu diria que o não-alinhamento ativo depende tanto do multilateralismo regional e da cooperação quanto dessas reuniões de alto nível. Uma recente cúpula diplomática sul-americana em Brasília convocada por Lula – a primeira realizada em dez anos – reflete a consciência do Brasil sobre a necessidade de trabalhar com os vizinhos para implantar suas iniciativas internacionais.
Pense localmente, aja globalmente
Essa necessidade de agir em conjunto também é impulsionada pela crise econômica da região. Em 2020, a América Latina foi atingida por sua pior recessão econômica em 120 anos, com o PIB regional caindo em média 6,6%. A região também sofreu a maior taxa de mortalidade por Covid-19 do mundo, respondendo por quase 30% das mortes globais causadas pela pandemia, apesar de representar pouco mais de 8% da população mundial. Nesse contexto, ser pego no meio de uma grande batalha de poder não é atraente, e o não-alinhamento ativo ressoou.
Além da incipiente Guerra Fria EUA-China e da guerra na Ucrânia, a ressurreição do não-alinhamento em sua nova encarnação “ativa” reflete um desencanto generalizado no Sul Global com o que é conhecido como a “Ordem Internacional Liberal” existente desde a Segunda Guerra Mundial.
Essa ordem é vista como cada vez mais desgastada e indiferente às necessidades dos países em desenvolvimento em questões que vão desde o endividamento internacional e a segurança alimentar até a migração e as mudanças climáticas. Para muitas nações do Sul Global, os apelos para defender a “ordem baseada em regras” parecem servir apenas aos interesses da política externa das grandes potências, e não ao bem público global. Em tal contexto, talvez não seja surpreendente que tantas nações estejam se recusando ativamente a ser apanhadas em uma dinâmica “nós contra eles”.
*Jorge Heine é diretor-interino do Frederick S. Pardee Center for the Study of the Longer-Range Future, Boston University
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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